Raul Juste Lores

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Opinião

São Paulo homenageia o papa Francisco com estacionamento no Minhocão

Poucas horas depois da morte do papa, mesmo em viagem no exterior, o prefeito Ricardo Nunes anunciou que o papa Francisco daria nome a um colégio municipal CEU em Sapopemba.

É quase um milagre. O prefeito não é exatamente rápido para homenagear grandes figuras que se foram —especialmente as da cidade.

Jô Soares ainda não teve seu nome estampado em nenhum equipamento público. Nem Silvio Santos ou José Celso Martinez Correa. Nem o brilhante engenheiro Mario Franco, nem o multipremiado arquiteto Paulo Mendes da Rocha, ambos responsáveis por dezenas de obras na Pauliceia.

Alguns ativistas até fizeram uma carta aberta para que a rua General Jardim ganhasse o nome do arquiteto. Mas como fazer demandas, até nos bastidores, dá trabalho, os proponentes deixaram a homenagem pública a Paulo Mendes da Rocha evaporar.

Minhocão e Francisco

O milagre de Francisco sobre Nunes durou pouco. Bastou uma semaninha apenas para a homenagem ao papa soar mais marqueteira que nunca. O que Francisco acharia da ideia estapafúrdia de se criar um estacionamento embaixo do Minhocão, apenas para espantar —ou reduzir— a presença de moradores de rua por ali? O papa certamente a acusaria de blasfêmia.

E isso não quer dizer olhar para o outro lado quando se fala do baixio do Minhocão como se fosse uma moradia aceitável.

Tirando alguns demagogos que assolam a política local, a maioria dos paulistanos sabe que lugar de seres humanos não é ao relento, menos ainda embaixo de um viaduto. Se a luta é por dignidade a quem teve mil percalços na vida, é para ontem o debate da ampliação dos horários de funcionamento dos abrigos públicos, inclusive com armários onde os abrigados possam deixar seus pertences quando voltam para a rua.

Além da criação de canis. Se milionários não podem viver sem seus pets, imagine quem foi abandonado por quase todo mundo. E de políticas assistenciais para preparar a saída das ruas e a reconstrução de laços familiares.

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Ignorância da rua

São Paulo mal sabe quantos de seus moradores de rua têm problemas mentais ou apenas falta de dinheiro. Quantos são violentos ou quantos são alcoólatras. Quem é dependente químico, quem fugiu de surras de parentes. Colocar gente tão diferente sob o mesmo teto é uma má ideia. Os presídios brasileiros deveriam nos ensinar o estrago que é misturar pessoas com bagagens de pesos muito diferentes tendo que conviver à força.

Nos últimos trinta anos, nenhum prefeito paulistano entregou a prefeitura com um número menor de moradores de rua de que quando chegou ao cargo. Ou seja, tarefa simples não é. Mas criar estacionamento para ver se eles vão para algum lugar menos visível é abjeto.

O papa Francisco, que nasceu e cresceu em Buenos Aires, foi testemunha do uso inteligente dos baixios de viadutos portenhos. Há mais de trinta anos, viadutos por lá ganham desde quadras esportivas e áreas de convivência, nos bairros mais necessitados, a restaurantes, lojas e até boates nos minhocões que passam por bairros nobres. (Fiz um vídeo sobre o assunto.)

Se a prefeitura paulistana fosse abençoada com o espírito de Bergoglio já estaria pensando em oficinas de marcenaria ou jardinagem sob tantos viadutos para moradores de rua. Atividades esportivas ou atendimentos intensivos com psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais.

Para as questões que não podem esperar meses ou anos de reabilitação, a prefeitura já estaria pensando em quadras esportivas, com professores de educação física. Barbearias móveis para quem está na rua, assim como duchas. Sem surpresas, muitos bonzinhos de hoje pegariam em armas para impedir que o "seu" viaduto tivesse equipamentos permanentes para moradores de rua. Mas a queda de máscaras seria pedagógica também.

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Mas até para o papa a situação paulistana exigiria muita prece. Buenos Aires não tem nem mil moradores de rua, e a Cidade do México tem apenas 1.200 deles. Aqui a situação degringolou e atinge boa parte da sociedade que não mora na rua.

O ir e vir do pedestre, da mulher à noite à avó levando os netos à escola pela manhã, deve ser seguro e sem sobressaltos. Algumas das nossas cracolândias, com dependentes atacando o vidro dos carros com pedras, há tempos deixaram de ser um problema só de saúde pública. O estacionamento da Amaral Gurgel demonstra que São Paulo já entregou para Deus a população de rua, e quer varrer os indesejáveis para fora do baixo dos viadutos.

Quando o prefeito Nunes esteve no Vaticano no ano passado, a meses da campanha eleitoral, levou o filho de Bruno Covas para conhecer o pontífice. Coisa de dinastia do Oriente Médio. Mas o ex-prefeito Bruno já recebeu homenagens em parques, hospitais e prédios públicos em quantidade maior que Rita Lee, Abilio Diniz, Jô Soares e Silvio Santos juntos. Coisa dos políticos locais.

Já o deputado estadual Emídio de Souza, do PT de Osasco, quer que o Memorial da América Latina seja batizado como papa Francisco. Sim, aquele onde o auditório e a biblioteca não têm acústica, as obras de arte derretem e só é muito usado para festivais privados para poucos (vídeo aqui). A política paulista realmente parece não respeitar, nem entender, o primeiro papa latino-americano.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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