Museu de R$ 200 mi de Ratinho Jr. à beira de estrada já é clássico nacional
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Você conhece algum grande museu do mundo à beira de estrada? Imagina desembarcar em qualquer aeroporto, carregado de malas, cansado do voo, querendo correr pro hotel, mas parando em um museu antes?
Ou, depois de chegar ao hotel, voltar ao aeroporto só para visitar um museu, sem nada ao redor? Dando aquela contribuição ao trânsito e ao gasto de combustível?
Mesmo com o longo histórico brasileiro de construir equipamentos públicos nas piores localizações possíveis, o governador Ratinho Jr. já merece um troféu de destaque. Na semana passada, em Paris, ele apresentou o projeto da primeira filial do Centro Cultural Pompidou na América Latina, que será em Foz do Iguaçu.

Orçado em otimistas R$ 200 milhões, ele vai ficar na beira da Rodovia das Cataratas, no quintal do Aeroporto Internacional de Foz de Iguaçu, a quase dois quilômetros da saída do terminal. Nem a foto da propaganda conseguiu esconder a roubada geográfica.
Um presente de grego da CCR, que é a concessionária do aeroporto até 2051, e cedeu o terreno de 24 mil metros quadrados para a filial. Será que a CCR, sem pensar nos comerciantes locais da cidade, quer criar um shopping do zero ali?
O governador deveria ter rejeitado a oferta. Por menor que seja o aeroporto, qualquer turista sabe como são seus arredores: galpões, estacionamentos sem sombra, hangares, barulho e muito trânsito. Imagina um museu a 29 minutos de caminhada do terminal? Não orna.
Aliás, nem a CCR consegue ter um mapa decente do deserto escolhido. Ou estão com vergonha da oferta, ou faltou geolocalizador.
Mas quem disse que governadores têm assessores educados em urbanismo por perto? A negociação começou em 2020, ou seja, dava tempo para se escolher entre os muitos espaços ociosos de Foz um que também servisse aos moradores. Não só aos turistas.
Foz, como qualquer cidade brasileira, tem hotéis, comércio de rua e restaurantes que já viveram tempos muito melhores em sua área consolidada, que ganhariam com um museu nas proximidades. "Ah, tem muita fila no museu? Vamos dar uma voltinha!".
Aberto em 1977, o Pompidou original turbinou a então degradada região Beaubourg - Les Halles da capital francesa. Foi a maior inspiração do Centro Cultural São Paulo, na Vergueiro, inaugurado cinco anos depois. Com suas escadas na fachada que permitem ao visitante admirar Paris enquanto escala o prédio, tem uma praça em frente que reúne multidões espiando o interior do museu. Ver e ser visto é uma das graças de qualquer cidade.
Criar museus em áreas sofridas precisando de um energético já era comum muito antes do Guggenheim Bilbao, de 1997. Fazer museu em beira de estrada é um desserviço a Foz.
Gastar de novo
Em Bilbao, quando se sai do Guggenheim, há comércios, restaurantes e hotéis que só foram fortalecidos pela franquia do museu nova-iorquino ali. A filial do Pompidou, em Málaga, na Espanha, está estrategicamente entre um dos principais parques da cidade e a revitalizada região portuária — ambas visitáveis a pé a partir do museu.
Os gênios que escolheram a localização do Pompidou Paraná devem prometer, até 2040, que surgirão uma nova praça, um novo refeitório, um novo restaurante, um novo mega estacionamento, um novo tudo para compensar a aridez do entorno do novo museu. Para que melhorar bairros já servidos de infra se podemos começar tudo do zero, novamente?
Começar do zero, por favor, é para países com petrodólares sobrando, do Qatar à Arábia Saudita. No Brasil, ainda abandonamos o que já temos para começar do -10, mais longe.
Foz embarca na tradição da Pampulha, onde Juscelino Kubitschek espalhou algumas das melhores criações de Oscar Niemeyer no meio do nada (oitenta anos depois, continua sendo uma área erma). Na Fundação Iberê, de Porto Alegre, um belo prédio de Álvaro Siza brotou também em uma via expressa, de carros em alta velocidade, onde não mora ninguém (já o centro de Porto Alegre, coitado, continua na UTI).

No Rio de Janeiro, a Cidade das Artes, do arquiteto francês Christian de Portzamparc, foi construída no meio de um descampado na Barra da Tijuca. Vias expressas e rotatórias são as únicas presenças que reduzem a solidão do megacomplexo desafinado. Os frequentadores do lugar, que só conseguem chegar de carro, dão aquela contribuição ao trânsito ameno do Rio de Janeiro.

Piores ainda são alguns dos menos inspirados Niemeyers tardios, em arquitetura e urbanismo: um centro cultural em Goiânia e uma estação de ciências em João Pessoa. Ambos eram apenas chamarizes para promessas imobiliárias de novos bairros, mas onde nada germinou 15 anos depois de entregues. Aprendemos? Claro que não.
Em Foz, nem essa narrativa pega. Quem vai querer construir mais coisa do lado do aeroporto? Repetir Congonhas?
Estadia maior
Foz do Iguaçu é das poucas cidades médias do Brasil que pode sonhar com um museu grande. Qualquer estudioso de turismo sabe que o maior objetivo hoje é aumentar ao máximo a estadia de turistas.
Muita gente que vai a Foz fica apenas um par de dias. Depois da visita às cataratas, não vê muitas outras coisas pra se fazer, e vai embora. Não é a avenida Paulista, o Centro de São Paulo ou a região da Luz, com uma grande instalação cultural a cada quarteirão.
A cidade tem quase 300 mil habitantes, ou seja, o dobro de Punta del Este, Mendoza ou Balneário Camboriú, e pouco menos que Bilbao, New Orleans ou Orlando. Mas, fora do pacote cataratas-compras, a cidade se contenta com um mero Museu de Cera, nada apto para os olhos mais sensíveis. Sem os cassinos do lado argentino ou as compras do paraguaio, pode fazer tal investimento para saciar as ambições presidenciais do governador Ratinho.
O arquiteto escolhido para a empreitada, o paraguaio Solano Benítez, é premiado e experiente, e vai trazer uma linguagem rara às nossas construções públicas, que imploram por alguma renovação. Mas arquitetura e urbanismo são coisas diferentes. Colocar prédio bonito no meio do nada é uma tradição não contestada no Brasil. As reclamações contra o trânsito crescente, as promessas de se renovar os centros, a ideia de se pensar em cidades sustentáveis são apenas coadjuvantes na nossa hipocrisia.
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