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Reinaldo Azevedo

Covarde, Bolsonaro usa garantia como impunidade; mancha Presidência e Carta

Bolsonaro em um dos dois momentos mais abjetos de sua carreira, ambos contra mulheres: 1) quando fez a apologia do estupro e 2) agora, quando ataca com agressividade asquerosa, a honra de uma jornalista  - reprodução.
Bolsonaro em um dos dois momentos mais abjetos de sua carreira, ambos contra mulheres: 1) quando fez a apologia do estupro e 2) agora, quando ataca com agressividade asquerosa, a honra de uma jornalista Imagem: reprodução.

Colunista do UOL

18/02/2020 17h07

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O novo ataque do presidente Jair Bolsonaro à jornalista Patrícia Campos Mello é a reiteração da mais pura, explícita e inequívoca covardia. Põe a força do seu cargo e suas milícias digitais a serviço da injúria e da difamação, no esforço inútil de desmoralizar o trabalho de uma profissional séria, com o intuito adicional de abalá-la emocionalmente.

É lixo moral, ético, político e existencial. Reflete, tudo indica, a esfera em que viveu Bolsonaro até chegar à Presidência, com assassinos de aluguel sendo chamados por sua patente e ganhando condecorações. A propósito: o agora presidente confessou que Flávio, o filho, só distinguiu um policial preso sob a acusação de assassinado a pedido seu.

Bolsonaro diz com todas as letras quem é ele, para gáudio e felicidade dos seus fãs. Até aí, surpresa nenhuma. Mas também rebaixa a Presidência da República e degrada uma garantia constitucional.

Por que se dedica com tamanha determinação ao ataque? Porque seus sábios devem ter-lhe soprado às orelhas: "Pode atacar à vontade. Nada vai acontecer. Vossa Excelência (ou "você"!) está protegido pelo Parágrafo 4º do Artigo 86 da Constituição, a saber:
"O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções."

Usualmente, entende-se essa disposição como a impossibilidade de responsabilizar o chefe do Executivo, no curso do mandato, por atos anteriormente cometidos. Ela não assegura a imunidade material ao chefe da nação, mas lhe garante a imunidade formal. Em princípio, se Patrícia processar Bolsonaro, o caso pode ficar em suspenso — sobrestado — até o fim de seu mandato.

As coisas asquerosas que Bolsonaro diz, em entrevista, guardam relação com o seu mandato? Estamos diante de uma questão interessante. É bom lembrar que a Primeira Turma do Supremo já suspendeu a imunidade do então deputado Bolsonaro, tornando-o réu duas vezes por apologia do estupro. Naquele caso, entendeu-se que a ofensa dirigida à deputada Maria do Rosário (PT-RS) — na verdade, a todas as mulheres — não estava protegida pela imunidade.

Por analogia, pode-se concluir o óbvio: ofender a honra de uma pessoa, difamá-la, depredar a sua reputação, lançar os cães hidrófobos das redes sociais contra uma profissional — e contra uma profissão — são atos, em princípio, estranhos ao exercício da função. Ocorre que isso se deu enquanto o chefe da nação concedia uma entrevista coletiva justamente porque chefe da nação, no interesse, sim, de proteger o seu mandato, uma vez que a reportagem de Patrícia que desencadeou a fúria — o impulsionamento de mensagens no WhatsApp em favor do então candidato Bolsonaro — pode levar à revelação de uma esquema de financiamento ilegal de campanha, com gastos não-declarados ao TSE, o que, se comprovado, rende cassação da chapa.

Mas isso dependeria de interpretação da maioria dos ministros do Supremo — casos relativos ao presidente são sempre apreciados pelo pleno.

Ocorre que, para chegar ao tribunal, há obstáculos que não seriam vencidos com facilidade.

O Artigo 86 da Constituição garante proteção especial ao presidente de três modos:
a: Parágrafo 3º: "Enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão";
b: Parágrafo 4º: já foi citado aqui; o presidente não pode ser responsabilizado por crimes comuns estranhos ao exercício do mandato;
c: caput do próprio artigo: "Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade."

Eis aí: para que uma acusação de crime comum, ainda que relacionada ao exercício do mandato, chegasse ao Supremo precisaria da aprovação de pelos menos dois terços da Câmara. Não se obteria hoje esse número.

ESTOU ENTRE AQUELES QUE NÃO ENCONTRARIAM DIFICULDADE NENHUMA EM EVIDENCIAR QUE O CRIME COMETIDO POR BOLSONARO CONTRA PATRÍCIA TEM RELAÇÃO COM O EXERCÍCIO DO SEU MANDATO, SIM, DAÍ O DESESPERO DELE.

Ainda que acabasse havendo esse entendimento — o que provavelmente não ocorreria —, de sorte que a Câmara examinasse a licença para processar o presidente, não haveria o número necessário de deputados para permitir que o processo seguisse adiante.

COVARDIA EXPLÍCITA
E então voltamos à covardia explícita de Bolsonaro: o machão, o corajoso, o valentão põe a força do seu cargo contra a jornalista porque sabe que, por ora ao menos, não será alcançado pela Justiça.

Eis o motivo por que seu ataque é especialmente pusilânime. De resto, mais uma vez, rebaixa a Presidência da República e uma garantia constitucional ao mais abjeto esgoto moral, que faz correr a céu aberto no Palácio do Planalto.

Enquanto isso, seu ministro da Justiça, um falso Leporello com ambições a Don Giovanni, concede entrevista a outro difamador de Patrícia — o deputado Eduardo Bolsonaro — para criticar a liberdade de uma cineasta de fazer, afinal, de contas, o filme que lhe der na telha.

Bolsonaro e Moro representam, hoje, a maior ameaça ao sistema de garantias individuais e públicas inaugurado pela Constituição de 1988.