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Reinaldo Azevedo

Rebelião das massas, minorias, tentações totalitárias e democracia abobada

Livros essenciais para entender o que está em curso no mundo. Dois deles são bem antigos no tempo, mas conservam a força das ideias - Reprodução
Livros essenciais para entender o que está em curso no mundo. Dois deles são bem antigos no tempo, mas conservam a força das ideias Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

27/02/2020 07h30

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A reprimenda do ministro Celso de Mello, decano do STF, aos vandalismos de Jair Bolsonaro e general Augusto Heleno foi clara, mas ainda branda. A fala de Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, mostrou-se certeira, sim, mas não à altura da ofensa. Dias Toffoli, presidente do Supremo, falou para jogar água na fervura. E Davi Alcolumbre, presidente do Senado, preferiu o silêncio.

"Como as democracias morrem", resposta que tentam dar Steven Levitsky e Daniel Ziblatt? Por que estaria "O Povo contra a Democracia", como aponta Yasha Mounk? Notem que cito dois livros recentes que pensam a crise dos regimes democráticos contemporâneos.

Tais obras têm recortes diversos, estudos particulares de caso, mas se interessam pelo mesmo objeto: a crise do sistema representativo como o conhecemos; a emergência de atores velhos, mas que se expressam de um modo novo no debate público em razão da revolução técnica; a evidência de que os instrumentos clássicos de mediação de conflitos parecem insuficientes para responder às demandas que, sem filtros ou tempo de acomodação, eclodem antes que o poder público se previna.

São muitos os fatores a explicar estes tempos perigosos. Entendo que os dois livros — que tocam em questões relevantes, sim, e merecem ser lidos — dão pouca atenção a um aspecto que me parece crucial: as democracias morrem, e o povo estaria contra o regime porque os democratas se acovardam na defesa do sistema, deixando-se emparedar pela algaravia de vozes que esmaga os fatos em benefício das versões.

Falham miseravelmente em aplicar as sanções devidas aos quem têm a ousadia de recorrer aos instrumentos oferecidos pela democracia para destruir seus fundamentos. Já indaguei e respondi mais de uma vez e volto a fazê-lo: os que recorrem a um regime de liberdades para solapar a própria liberdade devem ter direito a voz? Eu digo "não"!

Os que ambicionam um lugar do Parlamento — o Poder por excelência a representar a diversidade das vontades — para corroer suas prerrogativas têm de ser tolerados como expressão dessa diversidade? Aquela mesma que esmagarão impiedosamente caso conquistem aquilo que ambicionam: o poder absoluto? Eu digo "não!".

No Artigo 10 dos 85 que compõem "O Federalista", escreve James Madison que o poder das facções tem de ser contido por uma minoria que governa com a delegação do povo, cujas opiniões "são filtradas por uma assembleia escolhida de cidadãos, cuja sabedoria pode melhor discernir o verdadeiro interesse do seu país e cujo patriotismo e amor à justiça serão menos propensos a sacrificá-lo a considerações temporárias ou parciais."

Escreve ainda: "Sob tal regulação, é bem possível que a voz pública, manifestada pelos representantes do povo, seja mais consoante com o bem público, que se manifesta pelo próprio povo, convocado para esse fim".

A afirmação de Madison constitui a fina flor do pensamento conservador, que nada tem a ver com o esgoto a céu aberto do bolsonarismo e suas milícias. No texto, noto, Madison chama "democracia" àquilo que hoje chamamos "populismo" e "República" ao que entendemos por democracia. Trata-se de uma receita que combate tanto as revoluções como as oligarquias ou as milícias.

Pois bem, meus caros. Os meios contemporâneos de expressão da vontade tendem, por sua própria natureza, a fragilizar os instrumentos de representação, em particular o Congresso. Aquele homem-massa, antes acomodado em suas aspirações e afazeres, como queria Ortega y Gasset, é chamado à rebelião; quer ter uma existência "além de si mesmo", para ficar nos termos do autor. Observem: Madison e Ortega y Gasset jamais frequentariam a galeria de referências de esquerdistas revolucionários, cuja militância é disruptiva, rompedora da ordem.

O pensamento que classifica a si mesmo de "progressista", identificado com teses à esquerda, não estava preparado para uma rebelião que hoje é conduzida não por conservadores, mas por populistas reacionários. Ela destrói as mediações com que o conservadorismo civilizador procura conter rebeliões, revoluções e facciosismos. É reacionária e, pois, também disruptiva. É a revolução rumo ao passado idílico e falso, com os instrumentos da tecnologia contemporânea. O PT não tem estado calado por estratégia, mas por não ter, por ora, o que dizer. E isso não é necessariamente bom — não quando embusteiros resolvem conduzir a tal rebelião rumo à destruição dos valores democráticos.

O torpor que as esquerdas experimentam, e não só no Brasil, deriva do fim de uma ilusão: a de que a "rebelião das massas" — o seu despertar, que Ortega y Gasset não apreciava — endossaria necessariamente seus valores e sua metafísica. Dotados de mais instrumentos para interferir na vida pública; superando, pois, os aparelhos de que dispunha aquela tal burguesia para conter os apetites violentos; libertos das ilusões da ideologia — burguesa, claro! — que lhes emprestaria uma falsa consciência, os indivíduos, então, escolheriam o caminho da revolução para a frente. Errado!

Assiste-se, como é notório, à disrupção para trás. Goste-se ou não dos pressupostos do marxismo e de seus derivados no pensamento contemporâneo — e, sabem todos, eu não gosto —, o fato é que as prefigurações e ilusões da esquerda, a exemplo do que se dá, no terreno adversário, com o pensamento liberal, são caudatários do racionalismo, da tentativa de organizar a sociedade segundo o saber científico, da prevalência desse saber sobre o preconceito.

O Brasil de 2013 é eloquente. A extrema-esquerda recorreu às redes para convocar o homem revoltado — e "não era pelos 20 centavos", certo? Nada de Madison ou de Ortega y Gasset com sua pregação antirrevolucionária... Três meses depois, a reação engolfava a revolução, com linguagem também disruptiva, mas essencialmente irracional. Também não era pelos 20 centavos. Era contra os instrumentos de mediação do poder — qualquer um. A Lava Jato viria pouco depois para oferecer um certo horizonte utópico àquele homem-massa que passou a ambicionar uma existência além de si mesmo. O Brasil politizava-se como nunca. Para matar a política.

Como as democracias poderão responder à rebelião em massa dos homens-células, organizados em rede e estimulados a lutar contra as conquistas da democracia? Ninguém sabe ainda. Mas sei qual deve ser a resposta aos vândalos da ordem constitucional, que querem sacrificar o regime de liberdades públicas em nome da suposta vontade popular: têm de sofrer as sanções previstas nas leis. E as falas, pois, dos homens de Estado precisam ser mais duras e mais claras diante de agressões como as cometidas por Bolsonaro e Heleno.

Mais: ou a Câmara e o Senado cassam os respectivos mandatos daqueles seus membros que marcharem contra o próprio Poder Legislativo ou estarão assinando o atestado de sua obsolescência.