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Reinaldo Azevedo

Para tomar lugar do chefe, "duce" Moro persegue até roqueiros e viola Carta

Cartazes do "Facada Fest", show de rock em que o ministro Sergio Moro enxerga, acreditem!, crime. Com roqueiros ele fala duro. com amotinados armados, mole - Reprodução
Cartazes do "Facada Fest", show de rock em que o ministro Sergio Moro enxerga, acreditem!, crime. Com roqueiros ele fala duro. com amotinados armados, mole Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

02/03/2020 07h37

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Sergio Moro, ministro da Justiça, passou a ser o homem mais importante da República — coisa distinta de "o melhor homem da República" — quando, ainda juiz federal, resolveu caçar corruptos e combater a corrupção segundo um entendimento muito particular da lei. Tal entendimento seduziu multidões, atraiu o apoio da imprensa e destroçou o estado de direito.

Sim, é fato, corruptos foram presos. Mas o país flerta cotidianamente com a desordem institucional. Dispenso-me de evidenciar que se poderia ter feito o certo sem apelar a meios escusos. Como um legítimo conservador — que tem nos reacionários os seus piores adversários, não nos esquerdistas —, eu antevia o que se mostrava óbvio a um... legítimo conservador: agridam-se as instituições em nome do bem, e o resultado será fatalmente o mal. Simples. Elementar.

CAÇA AOS TARADOS E FASCISMO
Mais uma vez, terei de evocar aqui uma frase de Bernardo Bertolucci, que morreu em 2018, em entrevista concedida a Wagner Carelli na saudosa revista Bravo!: "O fascismo começa caçando tarados". Antes que Moro, o Mussolini de Maringá, acuse Bertolucci e a este escriba de fazer a defesa de tarados, ressalte-se: o cineasta italiano estava advertindo para o risco de a repressão ao crime descambar para o autoritarismo e atingir os direitos fundamentais de criminosos e não-criminosos.

Nota: os direitos de uns e de outros, desiguais entre si, têm de ser preservados. Adiante: numa democracia, sempre que a lei for ignorada pelo Estado sob a alegação de que um valor mais alto se alevanta, é a própria democracia que está sob risco.

Moro, é fato, começou a sua trajetória caçando corruptos. Hoje, já persegue roqueiros e seus cartazes. Não sem desfilar sobre um blindado do Exército em Brasília ou visitar o Ceará, onde havia policiais amotinados, saindo de lá sem censurar o ato criminoso. Pior: na prática, sua leniência silenciosa ou complacente com os bandidos de farda fez recrudescer aquilo a que chamavam "greve" e que eu chamava "crime". Sabino, o tal cabo, sabe bem quem é seu "duce". A greve acabou. Os problemas estão apenas no começo.

Só neste último sábado o sr. ministro da Justiça resolveu recorrer a um modestíssimo "ilegal" para classificar a agressão flagrante à ordem constitucional. Mas flertando com os grevistas. Indecente. Imoral. Indesculpável.

Não tarda para que o nosso condutor teste também seu porte sobre um cavalo, marchando com cara de bravo e determinando aos acólitos que só o fotografem de baixo para cima, com o queixo erguido. Como Benito! Sua "conja", que adora um trocadilho desde a página "Eu moro com ele", poderia cravar no Instagram: "Bonito Moroline"... Voltemos aos roqueiros.

E O GOLPISMO ARREGANHADO?
Circulam às pencas nas redes sociais memes, filmes e montagens convocando a população para protestar no dia 15 contra o Congresso e o Supremo. Parte considerável desse material incita os militares a rasgar a Constituição e a emparedar o Supremo e o Congresso Nacional. O "Duce de Maringá", por óbvio, não vê nada de errado. Certamente considera que marchar em favor do golpe militar é ação protegida pelo Artigo 5º da Constituição, que garante a liberdade de expressão.

Já os quatro roqueiros que organizam um evento chamado "Facada Fest" estão sob investigação da Polícia Federal. Os rapazes foram denunciados por um tal Edson Salomão, investigado ele próprio em inquérito aberto no Supremo por disseminação de fake news. É assessor do deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP).

E onde o sábio Salomão viu crime, aberração que conta com a anuência do ministro? Nos cartazes que divulgam o festival em Belém. Num deles, Bolsonaro é representado pelo palhaço Bozo, empalado por um lápis. Em outro, a personagem que alude ao presidente aparece vomitando fezes sobre uma floresta, com um bigode de Hitler, uma cueca com a bandeira americana e uma arma na mão. Num terceiro, do evento do ano passado, o desenho que remete a Bolsonaro traz uma faca na cabeça. Não gosto do nome do festival nem do material de divulgação. Mas há crime lá? A resposta, obviamente, é não.

REPRESENTAÇÃO E DISTORÇÃO
A faca na caveira é símbolo de forças especiais de polícia. No casamento da deputada Carla Zambelli (PSL-SP), Moro discursou e afirmou que ela mereceria uma medalha especial com a caveira e... a faca! Dada a impossibilidade de alguém ser empalado por um lápis, trata-se de uma alusão ao pouco apreço que o presidente demonstra pela cultura. Vomitar fezes sobre a floresta, com cueca dos EUA e arma na mão, reflete o que o grupo considera ser o entendimento do chefe do Executivo sobre meio ambiente, política externa e segurança pública.

Observem que, ao me referir às ilustrações e aos desenhos atinentes a Bolsonaro, empreguei os verbos "representar", "aludir", "remeter" e "refletir". Arte, boa ou má, é representação da realidade. A charge, a caricatura e o desenho de protesto são o que são: exageros para ressaltar características no mais das vezes negativas (raramente, também as positivas) que o crítico pretende pôr em evidência. Moro e o presidente não precisam gostar do "Facada Fest". Trata-se, no entanto, de um evento musical. E só. Mau gosto não pode render processo a ninguém, assim como o bom gosto não pode propiciar uma distinção cívica.

Digam-me cá: o presidente, O DE VERDADE, que afirma às portas do Palácio que jornalistas mulheres querem "dar o furo" não pode ser alvo de uma caricatura, de uma charge, de um desenho depreciativo? O "Duce de Maringá" nada entende de legislação penal, e isso é fato. Fosse ele um membro do MP a apresentar a denúncia ou um juiz a aceitá-la, qual seria a imputação? Escreveria: "Fulano de tal está estimulando a que pessoas enfiem um lápis no presidente"? Que tal esta: "Faca do crânio deve ser imagem privativa de discursos em solenidades de casamento"?

É ridículo! É juridicamente obsceno.

Essa obscenidade (i)legal, se prosperar, vai parar no Supremo. E lá será devidamente sepultada. Interessam-me os sinais que estão sendo emitidos. "Bonito Morolini", agora, quer estabelecer um padrão para que artistas possam se referir de modo crítico ao chefe do Executivo em charges, caricaturas e desenhos. É desnecessário evidenciar a que parcela do eleitorado está apelando.

PLENA CAMPANHA
O "Mussolini de Maringá" está em plena campanha eleitoral. Já escrevi aqui algumas vezes que ele e alguns de seus acólitos apostam no naufrágio de Bolsonaro à esteira do caso Flávio. O doutor se coloca como uma reserva estratégica do que há de mais reacionário e obtuso no país. Sim, os Bolsonaros já perceberam. Tanto é assim que passaram a tratar aos chutes figuras e canais de extrema-direita que são, acima de tudo, moristas.

Moro não é burro e sabe que, se a recandidatura do chefe se tornar inviável, será ele o nome natural a levar adiante os pleitos do reacionarismo mais boçal. Com uma vantagem: conta com o apreço também de setores mais centristas, que caíram na conversa de que ele é, de fato, o paladino da luta contra a corrupção.

Percebam que Moro se calou todas as vezes em que Bolsonaro, um de seus filhos ou algum troglodita do entorno dispararam boçalidades que agridem o estado de direito, as minorias ou, mais amplamente, os direitos humanos. Pior: ele tentou criar os meios, na área jurídica, tornar viável a barbárie bolsonariana. Tome-se o seu esforço para, no tal pacote anticrime, ver aprovada a excludente de ilicitude, que dá às polícias carta branca para matar.

Ao desfilar num blindado, flertar, de modo oblíquo, com um movimento de bandidos fardados e armados no Ceará e agora perseguir abertamente roqueiros que criticam Bolsonaro, o "Mussolini de Maringá" está se credenciando junto ao eleitorado cativo do seu chefe.

E, de resto, aposta que a relativa imunidade de que ainda goza na imprensa o alçará à condição de incontestável da República, ficando exposto, no máximo, à crítica das esquerdas e de liberais autênticos. Estes últimos, note-se, são, com efeito, muito poucos. Os tempos se encarregaram de fazer cair a máscara de fascistoides que apenas fingiam defender um regime caracterizado pelas liberdades públicas, pelos direitos individuais e pelo triunfo da ordem legal.