Será que objetivo era demitir Mandetta já? O alerta para um jogo com corpos
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Em meio a tantas coisas inéditas, parece que vimos mais uma: no dia em que o presidente prometeu demitir o ministro da Saúde, foi o ministro da Saúde, para todos os efeitos, quem demitiu o presidente. Deixo aqui uma questão: não terá Bolsonaro errado no tom no domingo? Quereria ele demitir mesmo o ministro, para valer? Arrisco-me a dizer que não.
Querer, eu sei, é claro!, que ele quer. Ocorre que pode ser obscurantista, mas não é burro. O número de contaminados e mortos vai subir exponencialmente. Todos sabemos disso. Mesmo com as medidas de isolamento social.
Se Mandetta caísse agora, Bolsonaro estaria obrigado a implementar outra política. Ainda que os governadores resistissem, o que o atual ministro chama de "movimentos assimétricos" nos Estados viraria uma rotina. Demitir o titular da Saúde seria chamar para o próprio colo os doentes e os mortos.
A cada palavra dita na sua entrevista coletiva, Mandetta respondia a Bolsonaro. Depois da truculência exibida pelo presidente, mais o ministro queria sair do que o presidente queria que ele saísse. E isso chegou a ser um fato por algum tempo porque também Mandetta não queria ficar.
E quem queria que ele ficasse?
Rodrigo Maia, presidente da Câmara.
Davi Alcolumbre, presidente do Senado.
Os 27 governadores.
Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, que tem o apoio irrestrito dos comandantes militares.
Os ministros planaltinos oriundos da caserna: Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e general Braga Netto, chefe da Casa Civil. Augusto Heleno, infelizmente, quer hoje o que quer Bolsonaro. Saúdo o fato de ter se recuperado da Covid-19 sem sequelas, que se saibam ao menos. Mas parece que se deixou tutelar intelectualmente por quem deveria ser seu tutelado.
Ah, claro! A esmagadora maioria dos brasileiros também queria a permanência de Mandetta. Uma informação: quando começou a circular o boato da demissão, houve panelaço no meu bairro — de classe média alta e ricos. Não pergunto o voto de ninguém. O corte, digamos, sociológico me faz apostar numa maioria folgada pró-Bolsonaro em 2018. Quando o ministro concedeu a coletiva dizendo que não sairia, ouvi outra coisa inédita: panelaço a favor. Eu mesmo escrevi aqui outro dia que isso não existe. Agora existe! Bolsonaro convocou um para apoiá-lo e não aconteceu nada, lembram-se?
Mandetta, como brincava a turma nas redes sociais (tudo envelhece muito rápido) sambou na cara da sociedade -- ou melhor: na cara de Bolsonaro:
- reafirmou o isolamento social, deixando claro não ser quarentena ou lockdown, sem descartá-los;
- falou de sua escolha em favor da ciência, escandindo sílabas; no dia anterior, o presidente havia sido ungido como milagreiro, de joelhos, por um pastor;
- reiterou que o pior ainda está por vir;
- saudou o trabalho da imprensa;
- pediu que cada auxiliar direto seu reafirmasse as medidas adotadas até agora;
- contou que foi convocado a participar de reunião com médicos cheios de ideias sobre remédios, convidando-os a falar com a Associação Médica Brasileira e com cientistas que pesquisam o assunto;
- deu até uma bronca carinhosa dos funcionários do Ministério da Saúde que lhe foram empenhar apoio; pediu que fossem combater o vírus.
Atendeu, em suma, aos apelos para não sair, mas ficou evidente que, então, tem de ser do seu jeito. E, parece, enquanto estiver lá, que será.
O PIOR POR VIR
Ocorre que o pior, O MUITO PIOR, está por vir. Mesmo com o amansamento ou achatamento da curva, especialistas preveem dias caóticos para o sistema de Saúde. Os brasileiros precisam ser permanentemente alertados para o inexorável. Quando acontecer, sejamos claros, é evidente que vai cair a confiança em Mandetta e na estratégia até aqui adotada.
Diante do sofrimento e da eventual anomia, as pessoas procurarão culpados. E, então, o "presidente demitido" pode querer se apresentar para anunciar: "Não sou eu! Falei que daria errado! Ficamos com os doentes e mortos e sem os empregos" — como se estes fossem resistir se o governo mandasse os brasileiros para o matadouro.
Bolsonaro sabe que a situação vai piorar muito. Aliás, os fatalistas que buzinam à sua orelha contra o isolamento social, a exemplo de Osmar Terra (o senhor está entrando para a história, deputado, acredite!), certamente o advertiram disso, razão por que dizem que tudo o que se faz seria inútil. Operam como se o vírus exigisse uma cota pré-estabelecida de corpos.
E, parece, o presidente conta com isso para, então, voltar a liderar. Tudo, claro!, sempre a depender do estado de ânimo dos brasileiros. Às portas do Alvorada, no domingo, Bolsonaro demonstrou certa insatisfação com o fato de o povo ser "pacífico até demais"
CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
Bolsonaro queria, sim, medidas de relaxamento e um Mandetta contra os governadores. Age nesse sentido porque precisa fazer a vontade, inclusive, de alguns empresários que financiam as milícias digitais, conforme apontou Rodrigo Maia no programa "Canal Livre".
Mais: como sabe o fiscal do Ibama que o multou em 2012 e perdeu o cargo de confiança em 2019, Bolsonaro é vingativo. Vale para ele a famosa frase de Talleyrand sobre um qualquer dos Bourbons: "Não aprende nada nem esquece nada".
Infelizmente, parece que o presidente está a fazer uma aposta macabra: tentar jogar nas costas de Mandetta e dos governadores, mais adiante, a suposta escolha errada, que então terá resultado em mortos e doentes aos montes.
E, no entanto, é preciso que se diga desde já: a escolha que está aí não é escolha. É o que apontam a razão e a ciência. É preciso que o ministro, sua pasta, os governadores e a imprensa sejam bastante realistas e, de fato, alertem os brasileiros para um período, com o perdão do clichê apavorante, de "sangue, suor e lágrimas".
Sem ele, é preciso que fique claro e explícito, seria ainda mais sangue, ainda mais suor, ainda mais lágrimas.