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Reinaldo Azevedo

Leitos privados serão usados em larga escala pelo SUS. Acorda, Nelson Teich

Ministro Nelson Teich: está na hora de o ministro da Saúde acordar para o colapso do sistema público. Hospitais privados estão sendo chamados a responder à demanda - Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Ministro Nelson Teich: está na hora de o ministro da Saúde acordar para o colapso do sistema público. Hospitais privados estão sendo chamados a responder à demanda Imagem: Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Colunista do UOL

05/05/2020 00h12Atualizada em 05/05/2020 16h46

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Leio na Folha, em reportagem de Fernando Canzian:
"Com a falta de leitos de UTI na rede pública, hospitais privados em alguns pontos do país têm sido obrigados pela Justiça a abrir vagas a pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde) sem qualquer remuneração. Diante disso, redes particulares em vários estados passaram a inventariar rapidamente os leitos de UTI ainda disponíveis para oferecê-los em negociação ao setor público. O temor dos hospitais é que esse tipo de requisição acabe ocorrendo em breve de forma desorganizada, tanto por decisões da Justiça quanto pelo confisco direto por estados e municípios. Membros da rede privada consideram que a adoção de uma "fila única" sem detalhamento técnico e financeiro neste momento traria problemas a médio prazo à manutenção do sistema."
(...)

Leiam a íntegra do texto. Bem, cumpre lembrar, de saída, o que dispõe a Constituição no Inciso XXV do Artigo 5º:
"XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano".

É o caso. Estamos na iminência de um "perigo público", e a autoridade competente, pois, pode usar a propriedade particular. O PSOL, diga-se, entrou com um ADPF no Supremo (671) com esse conteúdo. Note-se que o partido avalia, e parece difícil negar que assim é no mérito, que se trata de fazer cumprir um preceito fundamental. Tão fundamental que o Inciso XXV compõe o Artigo 5º, que é cláusula pétrea da Constituição, segundo dispõe o Artigo 60 da Carta.

O problema, em que toca a reportagem da Folha, é de outra natureza. Poder usar, isso pode! Mas como é que se remunera a rede privada para não desorganizar o que funciona? Em que circunstâncias se fará tal uso? Qual será a disciplina? Mais: o bem a ser usado, nesse caso, não pertence apenas ao proprietário: o hospital privado. Os leitos, inclusive os de UTI, também constituem a base de direitos adquiridos por pagantes de plano de saúde privados.

A reportagem da Folha informa que os Estados de São Paulo e do Espírito Santo estão dando tratamento adequado à questão. Reproduzo:
A prefeitura de São Paulo, por exemplo, fechou parceria com o hospital da Cruz Vermelha para obter 54 leitos, sendo 20 de UTI. Pelo valor de R$ 2.200 por leito, o Ministério da Saúde entra com R$ 1.600 e a prefeitura, com o restante. O secretário de Saúde de São Paulo, Edson Aparecido, diz que a prefeitura já identificou 800 leitos privados que podem ser adquiridos. Segundo ele, as negociações serão graduais e a preços "satisfatórios" para ambas as partes. No Espírito Santo, leitos de maior complexidade estão sendo alugados pela rede pública por R$ 3.100 e os de enfermaria, por R$ 1.200 (...)

PROJETO NO SENADO
Um projeto tramita no Senado a respeito. Reproduzo trecho de reportagem publicada no site da Casa:

Começou a tramitar no Senado um projeto de lei que estabelece o uso compulsório de leitos privados — desde que estejam disponíveis — pelo Sistema Único de Saúde (SUS) quando o objetivo for a internação de pacientes com Síndrome Respiratória Aguda Grave ou com suspeita ou diagnóstico de covid-19. O texto prevê pagamento de indenização nesses casos.

O projeto (PL 2.308/2020) foi apresentado pelos senadores Rogério Carvalho (PT-SE), Humberto Costa (PT-PE), Jaques Wagner (PT-BA), Paulo Rocha (PT-PA) e pela senadora Zenaide Maia (Pros-RN).

Para prever o uso público compulsório de leitos privados, de qualquer espécie, a proposta acrescenta itens à lei sobre medidas de enfrentamento à pandemia do novo coronavírus (Lei 13.979, de 2020). O texto também estabelece que o uso compulsório não exclui a possibilidade de a autoridade sanitária negociar com a entidade privada a sua contratação emergencial.

De acordo com o projeto, caberá aos dirigentes estaduais decidir, no âmbito da Comissão Intergestores Bipartite, como será feita a distribuição dos leitos públicos e a utilização compulsória dos leitos privados disponíveis, "considerando as necessidades públicas identificadas".

INDENIZAÇÃO
O projeto determina que a Comissão Intergestores Bipartite será responsável pelas regras de pagamento de indenização pelo uso dos leitos privados.

Além disso, o texto prevê que a União destinará recursos para o financiamento dos custos do uso compulsório de leitos privados ou a sua contratação emergencial mediante transferência obrigatória de recursos do Fundo Nacional de Saúde aos fundos estaduais ou municipais.
(...)

RETOMO
Informa ainda a reportagem da Folha:
Há dez dias, o Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão do Ministério da Saúde, divulgou resolução pedindo à pasta que "assuma a coordenação nacional da alocação dos recursos assistenciais existentes, incluindo leitos hospitalares de propriedade de particulares, requisitando seu uso quando necessário, e regulando o acesso segundo as prioridades sanitárias de cada caso". A mesma orientação foi repassada às secretarias estaduais e municipais de saúde, o que poderá dar margem para a requisição direta de leitos.

Acontece que resta evidente que não estão dando à questão os devidos peso e celeridade.

"Com algumas exceções, não fomos procurados para disponibilizar as vagas existentes de forma organizada. Assim, é melhor tentarmos uma má negociação do que não receber nada", diz à Folha Leonardo Barberes, diretor da Associação de Hospitais do Estado do Rio de Janeiro (Aherj), que reúne cerca de 160 unidades privadas.

Segundo ele, um leito de UTI custa entre R$ 2 mil e R$ 3,5 mil por dia. No começo do ano, mesmo dobrando o valor da tabela, o SUS chegou a R$ 1,6 mil. A rede pública já recorre à utilização de leitos privados. São 430 mil leitos de internação no país, 62% na rede privada. Ficam à disposição do sistema público 52%. Segundo o Ministério da Saúde, 59% das internações de alta complexidade do SUS foram feitas na rede privada em 2017.

Por definição, então, essa utilização em larga escala da rede privada por intermédio do SUS não deve gerar prejuízo aos hospitais, ou estariam todos quebrados, certo? Considerando que, em tempos normais, não há requisição nenhuma por via judicial, os hospitais privados cedem, então, porque se trata também de um negócio lucrativo. Por óbvio, trata-se de uma maneira de remunerar a ociosidade em sentido técnico. Ou por outra: equipamentos, médicos, intensivistas, plantonistas serão pagos com ou sem demanda privada. O atendimento ao paciente do SUS ajuda a compor a receita.

POR QUE AGORA
Se essa relação era relativamente harmônica até agora, o que mudou? A pressão gerada pela quantidade de pacientes, é claro! Há, ainda, a depender da decisão que se tome, o risco de uma chacoalhada no sistema, não é? Quem paga um plano de saúde tem a certeza de que encontrará um leito ou atendimento de UTI se precisar.

A depender do volume da massa de pobres doentes e da decisão que venha a ser tomada pela Justiça, não mais se distinguirão, em tempos de coronavírus ao menos e para esse propósito, quem paga e quem não paga plano de saúde, quem é e quem não é usuário do SUS.

Escreve Elio Gaspari na sua coluna deste domingo:
O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto defendeu a instituição de uma fila única para o atendimento de pacientes de Covid-19 em hospitais públicos e privados. Nas suas palavras:

"Dói, mas tem que fazer. Porque senão brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar. Não tem cabimento isso".

Ex-diretor da Agência de Vigilância Sanitária e ex-superintendente do Hospital Sírio-Libanês, Vecina tem autoridade para dizer o que disse. A fila única não é uma ideia só dele. Foi proposta no início de abril por grupos de estudo das universidades de São Paulo e Federal do Rio. Na quarta-feira, o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Zasso Pigatto, enviou ao ministro Nelson Teich e aos secretários estaduais de Saúde sua Recomendação 26, para que assumam a coordenação "da alocação dos recursos assistenciais existentes, incluindo leitos hospitalares de propriedade de particulares, requisitando seu uso quando necessário, e regulando o acesso segundo as prioridades sanitárias de cada caso."

ENCERRO
Tanto o presidente da República, Jair Bolsonaro, que prega que as pessoas saiam por aí se expondo ao vírus sem medo de matar ou morrer como os babacas das carreatas, que devem se julgar numa situação confortável porque têm a certeza de contar com um leito privado, deveriam tomar um pouco de simancol e vergonha na cara.

Todos os absolutos são relativos em tempos de caos — porque só o caos é absoluto. A pandemia expõe a cloaca moral da desigualdade, não é mesmo? Vai se deixar o pobre morrer, dilacerado pelo vírus, com leitos por ora ociosos na rede privada?

Convém que o ministro Nelson Teich acorde para a questão, agora que é ministro, não mais um procurador ou pensador do sistema privado de saúde.