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Reinaldo Azevedo

Fachin e fake news: direito ao dissenso não impõe consenso pela violência

Edson Fachin: ministro fez um voto técnico e deixou uma pergunta, com a devida resposta. É permitido sabotar a democracia? Não! - Adriano Machado/Reuters
Edson Fachin: ministro fez um voto técnico e deixou uma pergunta, com a devida resposta. É permitido sabotar a democracia? Não! Imagem: Adriano Machado/Reuters

Colunista do UOL

11/06/2020 09h13

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Excelente o voto do ministro Edson Fachin na sessão virtual desta quarta-feira, no julgamento da ADPF 572, que pede que o tribunal declare a ilegalidade e a inconstitucionalidade do Inquérito 4.781, que tramita no Supremo e investiga a indústria criminosa de fake news montada contra membros do tribunal, acompanhada de ameaças à integridade física de ministros e seus familiares. A íntegra está aqui. Tanto quanto Fachin foi o destaque positivo, Augusto Aras deu, mais uma vez, a sua contribuição ao vexame. Eu poderia dizer logo de cara: ele não entendeu nada. Mas seria falso. Ele entendeu tudo (leia post a respeito). Vamos ver.

O voto de Fachin é particularmente importante porque, quando Dias Toffoli resolveu abrir o inquérito de ofício, em março de 2019, o ministro foi um dos que viram a iniciativa sem muito entusiasmo. E não estava sozinho. Fora da corte, ouviu-se grande alarido, inclusive na imprensa, que apontou a medida como uma tentativa de o Supremo se blindar de críticas. Louve-se a correta percepção que teve Dias Toffoli: o que estava em curso era um ataque orquestrado a um Poder da República.

A ação era industriada e hierarquizada. Formou-se uma verdadeira organização criminosa que defendia, e defende, o fechamento do tribunal e do Congresso e a intervenção militar. O tempo se encarregará de esclarecer que as mesmas fontes que financiam a campanha difamatória e ameaçadora contra o Corte sustentam as grotescas manifestações golpistas na Praça dos Três Poderes, sempre prestigiadas por Jair Bolsonaro, general Augusto Heleno e, mais recentemente, general Fernando Azevedo e Silva. Só não chega a ser uma vergonha histórica porque rodapés não fazem história.

Os supostos óbices legais ao decreto não param de pé. O Artigo 43 do Regimento Interno do Supremo garante ao presidente da Corte a competência para instaurar inquérito. Quando no exercício das competências penais originárias, previstas no artigo 102, inciso I, alínea "b", da Constituição, o STF preside o inquérito e exerce a supervisão judicial. Não há novidade nisso. Ou todas as ações penais que correram no tribunal contra autoridades que ali têm foro seriam ilegais.

O Artigo 2º da Lei 8.038 define que "o relator, escolhido na forma regimental, será o juiz da instrução, que se realizará segundo o disposto neste capítulo, no Código de Processo Penal, no que for aplicável, e no Regimento Interno do Tribunal." A conversa de que o Artigo 43 só vale para crimes ocorridos nas dependências do STF é lorota. As agressões recorrem a meios eletrônicos, à Internet, para chegar aos ministros. "Dependência" do Supremo, nesse caso, é qualquer lugar em que a Corte tem jurisdição: o Brasil inteiro.

Desatentos ao que preveem o texto constitucional, a Artigo 43 do Regimento Interno adaptado à contemporaneidade, e a Lei 8.038, muita gente viu ilegalidade onde não havia. É que, em março de 2019, Sergio Moro ainda estava no auge da sua forma, nos primeiros meses de sua atuação como ministro da Justiça, e operava em parceria com a Lava Jato. A ordem era jogar pedra no Supremo. A imprensa aderiu à gritaria e não percebeu que ajudava a chocar os ovos da fascistização do poder. A extrema direita bolsonarista foi às ruas contra o inquérito e em defesa da malfadada CPI da Lava Toga. Num equívoco gigantesco, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), líder da minoria no Senado, recorreu ao próprio Supremo com a ADPF.

Agora que está claro que a campanha contra o tribunal era o serpentário dos fascistoides, arrependeu-se e tentou retirar a ação. A lei não permite. Augusto Aras pegou carona na ADPF para, disse, tentar disciplinar a coisa e evitar exageros. E produziu uma infâmia. Há um post a respeito.

Fachin descartou, nem poderia ser diferente, a suposta ilegalidade do inquérito e deixou claro, com todas as letras, que a liberdade de expressão não confere a ninguém o direito de ir às ruas para ameaçar a integridade dos Poderes Legislativo e Judiciário. Escreve ele:
"Atentar contra um dos Poderes, incitando o seu fechamento, a morte, a prisão de seus membros, a desobediência a seus atos, o vazamento de informações sigilosas não são, enfim, manifestações protegidas pela liberdade de expressão. Não há direito no abuso de direito. O antídoto à intolerância é a legalidade democrática. É preciso precatar-se para que a dose do remédio não o torne um veneno. O dissenso é inerente à democracia. O dissenso intolerável é justamente aquele que visa a impor com violência o consenso".

A agressão está em curso. A investigação, solidamente amparada em códigos legais, aponta que existe uma organização empenhada em agredir e desmoralizar o tribunal. Não duvido de que as linhas gerais de seu voto serão vitoriosas, talvez sem discordância. Ah, sim: o ministro apontou a inércia no Ministério Público Federal enquanto a indústria criminosa operava.

Notaram como a defesa da "liberdade de expressão" virou uma espécie de escudo da canalha que vai às ruas pregar golpe militar e fechamento dos Três Poderes? É gente que toma o crime como liberdade de expressão. O passo seguinte é tomar a liberdade de expressão como um crime. Não foi isso o que fez Bolsonaro ao tentar criminalizar aqueles que foram às ruas protestar pacificamente contra o seu governo?

Os criminosos querem emparedar as instituições para que possam silenciar a divergência. Ou, como escreveu o ministro Fachin, "o dissenso intolerável é justamente aquele que visa a impor com violência o consenso".