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Reinaldo Azevedo

Doença de presidente, se real, não tem importância; quase 70 mil mortos sim

Cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus: multiplicação de enterros e apelo a covas coletivas fizeram do local um símbolo da tragédia que se abateu sobre o país - Foto:Michael Dantas/AFP
Cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus: multiplicação de enterros e apelo a covas coletivas fizeram do local um símbolo da tragédia que se abateu sobre o país Imagem: Foto:Michael Dantas/AFP

Colunista do UOL

08/07/2020 09h40

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O Brasil vai fechar a semana na casa dos 70 mil mortos. Ultrapassará ainda a marca dos 100 mil. E, claro!, não se está a falar aqui dos casos de subnotificação. Como estamos mergulhados na lama do surrealismo de cada dia, não nos damos conta de que a imprensa noticiou, em 20 de junho, há meros 18 dias, que havíamos superado os 50 mil. Haverá um aumento da ordem de 50% em pouco mais de três semanas.

Só teremos um número próximo da verdade quando for possível confrontar o total de óbitos deste 2020 com o de 2019. Todas as outras causas de morte no país seguiram, por certo, sem grandes alterações. Os mortos a mais de 2020 — relevando-se um fator de correção, mínimo de um ano para outro, decorrente do aumento da população —, são, com pouca chance para erro, vítimas da Covid-19. Só aí teremos a dimensão do desastre.

Nesse cenário de desolação, o presidente vem a público para anunciar que está doente, não sem convidar, na prática, a população a tomar preventivamente hidroxicloroquina, ainda que a ciência, como se sabe, já tenha batido o martelo sem contestação: não há nenhuma evidência de que a droga seja eficaz — e há ainda o risco dos efeitos colaterais.

Que importância tem a doença de Bolsonaro? Como já escrevi, se ele não piorar, a resposta é esta: nenhuma! O que importa é a política federal de saúde, e esta é uma catástrofe. Dos anunciados R$ 40 bilhões que o Ministério da Saúde tem reservados para o combate ao coronavírus, o governo conseguiu gastar pouco mais de R$ 12 bilhões — menos de um terço. E isso ajuda a explicar o desastre.

Trata-se, antes de mais nada, de um caso de estúpida incompetência. Governos gastões certamente não primam pela excelência de gestão. Mas um que não sabe gastar consegue ser ainda mais nefasto porque certamente é a população pobre que paga o pato, uma vez que os endinheirados dependem menos dos serviços estatais.

O Ministério da Saúde ainda conta com um interventor militar, que lá está não para enfrentar a pandemia, mas para fazer as vontades do presidente. Não haveria um médico com cara de pau suficiente para, por exemplo, liberar o "protocolo da cloroquina". O general Eduardo Pazuello, o soldado, o fez. Afinal, diz ele, cumpre uma missão. Qual? Combater o coronavírus? Como os números evidenciam, a resposta é não.

Os mais influentes veículos noticiosos do mundo deram destaque à doença do presidente não porque se importem com Bolsonaro ou reconheçam a sua relevância. Ao contrário: ele é hoje tratado como expressão da extrema direita fascistoide, uma espécie de caricatura do que pode haver de mais detestável num governante: negacionista em relação à doença, agressor do meio ambiente, inimigo das minorias, militarista e submisso a Donald Trump — que, por sua vez, também é alvo de chacota em todo o planeta.

É claro que isso tudo tem um custo. Vai demorar muito tempo até que o Brasil volte à condição de candidato a país relevante no cenário internacional. O mundo já olhava com espanto para Bolsonaro. A Covid-19, com a consequente resposta desastrada do governo federal, se encarregou de nos empurrar ladeira abaixo.

A reação da imprensa internacional ao anúncio feito por Bolsonaro indica a profundidade do buraco em que nos metemos.