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Reinaldo Azevedo

Cloroquina já faz o governo ser um fora da lei. Esperem enxurrada de ações

Roberto Barroso, ministro do Supremo: estará cometendo erro grosseiro, sujeito a ações judiciais, quem ignorar os parâmetros da ciência - Nélson Jr./SCO/STF
Roberto Barroso, ministro do Supremo: estará cometendo erro grosseiro, sujeito a ações judiciais, quem ignorar os parâmetros da ciência Imagem: Nélson Jr./SCO/STF

Colunista do UOL

15/07/2020 08h57

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É do balacobaco ver o Ministério da Defesa a recorrer à Procuradoria Geral da República contra o ministro Gilmar Mendes. Até porque este é um governo fora da lei. E o futuro dirá. É questão de tempo para que chegue aos tribunais uma enxurrada de ações judiciais que terão como alvos tanto o Estado brasileiro como os gestores da política de Saúde. Refaço aqui o percurso. Já tratei do assunto. Ele volta agora com força. Faço uma pergunta, respondo e explico: o presidente da República e seus ministros têm o direito de agir contra o que dispõe a ciência? A resposta é esta: NÃO! A questão já foi a votação no Supremo.

Relembro.

Em maio, o governo mandou ao Congresso a MP 966. Dispunha que os agentes públicos, no enfrentamento dos efeitos diretos e indiretos na Covid-19, só poderiam ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa, nas áreas da saúde e da economia, se agissem com dolo ou erro grosseiro. Como estava, o texto era escancaradamente inconstitucional, uma aberração.

O caso foi parar no Supremo, com relatoria do ministro Roberto Barroso. Sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade foram impetradas contra o texto: dos partidos Rede Sustentabilidade, PSOL, PDT, Cidadania, PV e PCdoB e da Associação Brasileia de Imprensa. Nem poderia ser diferente. O Artigo 37 da Constituição é explícito no seu Parágrafo 6º: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."

Digamos que a intenção do governo fosse apenas proteger o servidor de ações judiciais em tempos difíceis. Se era assim, que diabos queria dizer o Artigo 2º da MP? Ele definia: "Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia."

Um artigo 3º dispunha sobre circunstâncias a serem consideradas para apontar a falha. Abriam-se as portas para o vale-tudo.

Em seu voto, que acabou vitorioso, o ministro deixou claro que, como estava, a MP não elevava a segurança do servidor público, mas abria caminho para a justificativa do malfeito, muito especialmente porque o Artigo 2º não especificava o que é erro grosseiro, limitando-se a um palavrório — isto escrevo eu, não ele — sem sentido claro, que apelava ao subjetivismo descarado e ao solipsismo oportunista. Afinal, o que queriam dizer "manifesto", "evidente" ou "inescusável"? Quando se trata de negligência, imprudência ou imperícia, o que é um "elevado grau"?

INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
O ministro poderia ter dito simplesmente: " É inconstitucional. Ponto!" Mas preferiu fazer o debate avançar sem desbordar das funções de magistrado e da tarefa do Supremo. Ele admitiu a constitucionalidade da MP sob condições, dando-lhe uma interpretação conforme a Constituição. Desde sempre, ressaltou ele, os atos de improbidade são... atos de improbidade, com ou sem pandemia. O mesmo vale para a roubalheira. A emergência de saúde não é razão para justificar o superfaturamento, por exemplo. E as ações policiais estão aí.

E ainda mais importante: em que se deve ancorar a definição de "erro grosseiro" ou do "elevado grau de negligência", "imprudência" ou "imperícia"? Na Constituição!

Erra grosseiramente, assim, quem atenta contra o direito à vida e à saúde ou agride o meio ambiente. Mas ainda podia ser impreciso. Então ele deixou claro: a inobservância de critérios científicos e técnicos na tomada de uma decisão, ignorando-se normas das autoridades nacionais e de organismos internacionais, constitui o "erro grosseiro" e o "elevado grau" de negligência.

Lembro que o mesmo Barroso concedeu uma liminar a uma ADPF suspendendo a veiculação da campanha "O Brasil não pode parar". Foi claro: o governo não tem o direito de ignorar o isolamento social como medida para tentar evitar o colapso no sistema de Saúde.

Seu voto triunfou. Não estão protegidos de ações civis e administrativas os agentes que ignorarem parâmetros técnicos para a imposição do distanciamento social (é o que recomenda a ciência) ou provocarem danos com a prescrição da cloroquina (nos dois casos, também cabem ações penais). Afinal, segundo o voto do ministro, existe no Brasil e no mundo um saber científico a respeito. E é contra o uso da droga.

A MP, como chegou ao Congresso, era arreganhadamente inconstitucional. A interpretação conforme a Constituição proposta por Barroso protege a vida e o bolso dos brasileiros. Se o governo pretendia arrancar do Congresso a autorização para a impunidade, o tiro saiu pela culatra. E não! O Supremo não estava legislando. O Planalto é que tentou violar a Constituição por intermédio de uma Medida Provisória. Quem resolve a questão? O Supremo. Não adianta tentar transformar o Ministério da Saúde num quartel.

ASSIM...
Contra a ciência, Eduardo Pazuello editou a portaria da cloroquina e da hidroxicloroquina. Contra a ciência, laboratório do Exército comprou insumos, produziu a droga, e o Ministério da Saúde a distribuiu hospitais afora. Contra a ciência, o governo e seus agentes, a começar do presidente da República, desrespeitaram e atacaram regras de distanciamento social.

O Ministério da Saúde, com sua gestão desastrada, não está protegido pela MP 966. Afinal, como está claro no voto do ministro, a inobservância de critérios científicos e técnicos na tomada de uma decisão, ignorando-se normas das autoridades nacionais e de organismos internacionais, constitui o "erro grosseiro" e o "elevado grau" de negligência.

Assim, com base no que dispõe o Artigo 6º do Artigo 37, "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."

Podem esperar pela enxurrada de ações civis e de improbidade.

E, claro!, desde sempre, há os crimes tipificados no Código Penal.