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Reinaldo Azevedo

Anvisa toma lugar de Deus, distorce lei e escancara politização. CPI já!

 Vista aérea do cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus. Eis um retrato eficaz de um país em que a agência responsável por liberar medicamentos decide se entregar a digressões sobre questões "geopolíticas". Resultado: ela se mostra incompetente como órgão de Saúde ? o que é ? e como pensadora, o que não é - Michael Dantas/AFP
Vista aérea do cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus. Eis um retrato eficaz de um país em que a agência responsável por liberar medicamentos decide se entregar a digressões sobre questões "geopolíticas". Resultado: ela se mostra incompetente como órgão de Saúde ? o que é ? e como pensadora, o que não é Imagem: Michael Dantas/AFP

Colunista do UOL

15/12/2020 06h55

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A Agência Nacional de Vigilância sanitária resolveu emitir uma nota de 11.393 toques — deveriam ser 11.394 não tivesse a agência errado o nome do "Brasil" em uma das 10 vezes em que a palavra aparece no texto — num esforço que soa deliberado de falar muito, não explicar nada e ainda causar confusão. A capacidade de se comunicar com o distinto público não mostra ser o forte por lá.

"Ah, Reinaldo, é que eles falam de ciência, e o público é leigo". Errado! O problema está justamente aí: a gloriosa Agência Nacional de Vigilância Sanitária resolveu enveredar também pelo terreno da especulação política. Mais do que isso: ofereceu uma interpretação de textos legais e competências que não coincide com os fatos. Há uma novidade: fala-se de um prazo.

Agora, afirmam os valentes, bastam dez dias para que se possa conceder o selo da agência para o uso emergencial de uma vacina. Para quem, como eu, saboreia textos, o da Anvisa já traz um caroço à primeira mordida, que tem de ser cuspido. O trololó começa assim:
"Diante das novas medidas regulatórias adotadas pela Agência e do cenário do uso emergencial das vacinas contra a Covid-19, a Anvisa comunica que..." E vêm na sequência os outros 11.248 toques, que deveriam ser 11.249...

Entenderam? A Anvisa é a geradora dos fatos que a própria Anvisa anuncia. Não estamos mais falando com uma agência reguladora, mas com o Altíssimo. Ela arroga para si o lugar de Deus. Doravante, devemos chamar a entidade não mais por seu nome, mas por "Aquela que É". Nomeá-la seria reduzir o seu poder. É de um ridículo sem par. Ainda espero ver toda essa gente sambando miudinho numa CPI. Se não agora, será um dia. Adiante.

Mas se diz finalmente:
"A Anvisa estima o prazo máximo de até 10 (dez) dias para análise do pedido de autorização de uso emergencial, diante da apresentação de toda a documentação necessária à concessão, nos termos do Guia Técnico."

Ah, bom! Como textos devem ser devidamente mastigados, para que se percebam todas as nuances, destaque-se aí que "Aquela que É" pode considerar, sempre segundo os próprios critérios, que nem todos os documentos foram entregues...

Na sequência, os amantes da obscuridade escrevem um longo parágrafo para oferecer a sua própria interpretação da Alínea "a" do Inciso VIII do Artigo 3º da Lei 13.979, que dispensa o registro na Anvisa de uma droga contra o coronavírus — o que não exclui a vacina —, bastando, para tanto, que haja a certificação de sua respectiva congênere nos EUA, na Europa, no Japão ou na China. E assim é enquanto durar s situação de emergência declarada pela Organização Mundial da Saúde.

"Ah, e se o glorioso general Eduardo Pazuello resolver praticar um pouco de distanciamento social, deixando os braços de Zezé Di Camargo, para declarar que o país não vive mais uma situação de emergência e que, portanto, a lei 13.979 perdeu validade?" Bem, resta apelar ao Supremo, não à Anvisa.

Entendam: a lambança em curso, decorrente da incompetência e da má fé, parece não deixar alternativa que não seja a judicialização. Aliás, a questão da vacina já está no tribunal. E cabe a ele criar o disciplinamento, pondo fim à desordem.

Como a agência sabe que está arrogando para si uma competência que não tem, tenta se justificar apelando à comparação:
"Acompanhando o cenário mundial, é possível perceber que, até o momento, nenhuma autoridade reguladora concedeu autorização de uso emergencial de forma automática, baseada na avaliação de um outro país."

Ocorre que, nas democracias, agências que têm as tarefas da Anvisa são independentes e não se transformaram em cabides de emprego de milicos, ficando sob a influência de um capitão da reserva arruaceiro. Adiante.

É neste trecho que a politização da Anvisa se escancara. Lá está escrito:
"É preciso ainda considerar a potencial influência de questões relacionadas à geopolítica que podem permear as discussões nacionais e eventualmente decisões de autoridades estrangeiras relacionadas à vacina da Covid-19. Há o risco ainda de que países coloquem interesses nacionais em primeiro lugar na garantia de acesso a uma vacina para seus próprios cidadãos, criando potencial de corromper o rigor com que as vacinas candidatas a imunizar contra a Covid-19 são avaliadas para autorização de uso emergencial."

Eis o resultado de se lotar uma agência reguladora de Saúde com militares da reserva que se consideram soldados de um presidente capitão, chutado do Exército por indisciplina. Em vez de pensar na imunização dos brasileiros, eles decidem brincar de joguinhos de guerra, exercitando teorias conspiratórias.

O que essa nota desastrada está afirmando é que, a depender do que chama "geopolítica", a agência pode negar a autorização até para o uso emergencial de um imunizante.

Bem, não pode!

E, por isso, reitero: é preciso dar uma banana para a Anvisa e seus milicos de pijama.