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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Kássio Conká e os que celebram cultos lotados queimam a Bíblia de Paulo

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

05/04/2021 04h48

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Então vamos falar a sério sobre cristianismo?

Que gente é essa que quer lotar as igrejas e mandar Paulo, o Apóstolo, plantar batatas? Com a devida vênia, podem estar seguindo qualquer outro livro, não a Bíblia. E isso inclui Kássio Conká — que também ignora a Constituição nesse caso.

Sim, igreja também é um negócio. Qualquer uma. Algumas são negócios disfarçados de igreja. São mais dissimuladas do que o capeta. Todas têm de ter contabilidade. Entra dinheiro, sai dinheiro. E muito! Por isso, diga-se, o Vaticano tem um banco, conhecido pelo eufemístico nome de "Instituto para as Obras de Religião". Um dos grandes escândalos financeiros da história se deu nas relações impróprias entre o Instituto e o Banco Ambrosiano. Pesquisem.

É claro que também o lucro das igrejas caiu bastante. Não basta a algumas gozar de isenções tributárias sob o pretexto de que realizam obras sociais. O argumento teria alguma legitimidade não fossem seus próceres notáveis multimilionários. Tudo o que não se vai encontrar nesse ambiente de hiperconcorrência religiosa são candidatos a São Francisco de Assis, que mal tinha de seu a própria roupa. Sua doutrina tinha lá suas particularidades, mas havia sinceridade.

Vá lá. O mercado da fé está aí. Vai quem quer. Alguma compensação as pessoas encontram nesses eventos. E não pretendo ser juiz da consciência religiosa de ninguém. O ponto é outro. Se igrejas, sob o pretexto de exercer um direito constitucional e de garanti-lo a seus fiéis põem em risco a segurança da coletividade, não estamos mais no terreno religioso. Eis o ponto.

Aglomerar-se em templos não ameaça apenas a saúde daqueles que fazem essa escolha. Essas pessoas sairão dos templos e usarão, depois, transporte público. Parte considerável delas trabalha em companhia de outras pessoas. Tornam-se potenciais agentes espalhadores de vírus. Se, na sua concepção, Deus as protege em razão de sua fé, Ele fará o mesmo com os que se tornam sócios involuntários da sua crença perigosa?

Com a devida vênia, um Deus que cobra que as pessoas coloquem a sua própria vida e a de terceiros em risco não é Deus.

Ademais, o que essa gente fez das palavras de Paulo em I Coríntios, 3:16-17 -- e aproveito para passar a informação a Kássio Conká. Se a Constituição não lhe cai bem, quem sabe a Bíblia. Lá está escrito:
"Não sabeis vós que sois templo de Deus e que o espírito de Deus mora em vós? Se alguém, pois, violar o corpo de Deus, Deus o destruirá. Porque o templo de Deus, que sois vós, santo é".

É uma das heranças do judaísmo que sobreviveu no cristianismo — razão por que as duas religiões abominam, por exemplo, o suicídio. Arriscar a própria vida implica agredir o templo de Deus, segundo o que está em Paulo. E o templo verdadeiro não é um edifício, mas o corpo do homem, que é também o corpo de Deus.

No culto deste domingo, numa igreja lotada, o pastor Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, afirmou sobre a decisão de Kássio Conká:
"Foi determinado por um ministro que as igrejas voltassem a ministrar culto. Mas o mérito não é do ministro, é de Deus".

Entre Valdemiro e Paulo, fico com Paulo.

Não foi, não, pastor!

Deus jamais autorizaria que seu templo fosse exposto a tal perigo. E para quê? Por nada! Afinal, a onipresença de Deus não cobra a presença do vírus.

Mantenho a campanha para salvar vidas: "Não pisque para o demônio! Pix para Deus".

Não creio nesse Deus das trocas comerciais, é claro! Mas há quem creia. Nada se pode fazer. Que ao menos não morram e não matem por isso.

Leia a Bíblia, Kássio Conká.

Ou melhor: leia, Kássio Conká!

Ontem eu lhe recomendei Machado de Assis, lembra?