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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Que PEC mude poder e papel de CPI para direito a silêncio não virar bagunça

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

14/07/2021 06h58

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Como numa música de Guilherme Arantes, o ministro Luiz Fux decidiu ser, nesta terça, um verdadeiro "farol no mar da incerteza". Vamos ver.

Salomonicamente, Fux atendeu parcialmente tanto a embargos da CPI como da defesa de Emanuela Medrades, representante da Precisa Medicamentos, e decidiu que:
1: cabe ao depoente, afinal, definir o que o incrimina ou não;
2: cabe à CPI arbitrar quando há abuso do depoente no exercício do direito de ficar calado.

O que já não era claro se tornou um pouco mais obscuro. E isso indica que, em algum momento, os poderes de uma CPI terão de ser necessariamente repensados.

Só para lembrar. O Parágrafo 3º do Artigo 58 da Constituição afirma que as CPIs "terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas".

Os competentes regimentos internos de Câmara e Senado dizem apenas que elas não podem investigar a outra Casa, o Poder Judiciário e os Estados. E coube à Jurisprudência do Supremo estabelecer o que as comissões podem ou não fazer. Elas detêm poderes próprios de autoridades judiciais, mas nem tanto. Não podem, por exemplo:
- decretar medidas cautelares;
- determinar mandados de busca e apreensão domiciliares;
- decretar indisponibilidade de bens, arresto ou sequestro;
- determinar escutas telefônicas.

E, por óbvio, tampouco podem negociar acordos de delação premiada.

Em razão disso, é despropositado, como li há dias, comparar a investigação de uma CPI com aquelas conduzidas pelo Ministério Público ou pela Polícia Federal, que têm como reclamar ao juiz essas providências.

Entendo que o papel da CPI tem de ser redefinido por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional. Melhor seria que lhe fossem dados, então, "poderes de investigação próprios da polícia e do Ministério Público", com a submissão dos trabalhos ao acompanhamento de um juiz federal. Como as coisas estão, caminha-se para uma não solução.

Por que afirmo isso?

Emanuela Medrades chegou ontem para depor com um habeas corpus que lhe garantia o direito de silenciar sobre questões que pudessem levar à autoincriminação. E ela houve por bem não responder nem mesmo qual era o seu vínculo com a empresa. Alguém poderia indagar: "Mas ela não exagerou? Em que isso a incriminaria?"

Bem, meus caros, quem pode dar essa resposta a não ser ela mesma? E se a verdade, no caso, concorre para incriminá-la? Quem poderá obrigá-la? A CPI então apelou a Fux. A indagação de fundo não tem resposta objetiva: quando é lícito ao depoente calar e quando não é?

E o ministro, que não é estranho à retórica do equilibrismo, disse que cabe à pessoa que depõe decidir. Nem poderia ser diferente.

Mas o presidente do Supremo, notável por seu discurso de grande paladino no combate à corrupção, não quis deixar a CPI a ver navios. E afirmou que cabe à comissão, então, decidir quando pode estar em curso o abuso de um direito — no caso, do direito de não se incriminar.

Mas onde estão as balizas para fazer essa avaliação? Em lugar nenhum! Eu estou entre aqueles que acham, por exemplo, que um flagrante de falso testemunho numa CPI pode render prisão. Não é um consenso. As comissões de inquérito podem decretar a prisão em flagrante, sim, mas não estão especificados os casos em que isso pode acontecer.

Dispondo o depoente de um habeas corpus que lhe garante o direito ao silêncio, não será a comissão a definir se a pergunta que deixa de ser respondida levaria ou não à autoincriminação, certo? Para tanto, precisaria estar na consciência do outro.

Ninguém duvida, a esta altura, de que a CPI encontrou práticas obscuras, que parecem incidir numa penca de crimes, seja no caso da compra da Covaxin, seja no caso do estrambótico imbróglio envolvendo a tal Davati. Para que pudesse avançar, teria de ter em mãos instrumentos que claramente não tem.

E se revela, então, o caráter ambíguo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Até certo ponto, ela funciona como se fosse polícia e juiz ao mesmo tempo. Vejam o caso das quebras do sigilo: ela não pede a um juiz, como faria a PF ou o MP. Ela mesma decide. E o eventual recurso contra a decisão é apresentado diretamente ao Supremo.

Como o caso não está entre os que geram prevenção — o que me parece absurdo —, pode haver, na prática, 10 juízes a cuidar de um mesmo assunto, o que, convenham, também é uma aberração. Para alguns deles, um pedido de quebra de sigilo tem de ser tão detalhado e minucioso como os que habitualmente povoam a Justiça. Para outros, basta que a pessoa esteja envolvida com o imbróglio investigado. Vira uma loteria. Tudo vai depender da sorte de cada depoente.

Ora, é claro que tem de prevalecer o fundamento de que a ninguém se impõe a autoincriminação. E nem a CPI pode mudar isso. Ocorre que esse fundamento precisa, então, conviver com outros instrumentos que tornem viável a investigação conduzida no Parlamento. E isso se conseguiria conferindo à CPI todos os instrumentos para a realização de um inquérito de fato. Para tanto, seria preciso que seus atos passassem pelo crivo de um juiz — de um, não de dez!

"Mas isso já não seria um processo?" Não! Como não é um inquérito conduzido pela Polícia Federal, por exemplo.

O que não parece aceitável é que uma garantia constitucional correta, que tem de ser assegurada — o direito de não se incriminar —, acabe servindo de instrumento para engabelar o Poder da República que, por excelência, traduz a vontade do conjunto da sociedade. Assim, entendo que é hora de repensar as CPIs.

Medrades volta a depor nesta quarta. Na sequência, é vez de Francisco Emerson Maximiano, sócio da Precisa. E, por óbvio, também ele dispõe de um habeas corpus que lhe garante o direito de não se incriminar — podendo, portanto, ficar em silêncio. Quem vai determinar o que o incrimina a não ser ele próprio? E, nesse particular, a CPI pode fazer muito pouco.

O papel das CPIs tem de ser repensado para lhe dar a devida efetividade. Com a submissão aos controles necessários que garantam a legalidade do inquérito.