Topo

Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Eduardo Bolsonaro tem de ser cassado. Aras, aceita-se apologia da tortura?

Reprodução
Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

04/04/2022 17h07

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) deveria ser cassado pela Câmara por quebra do decoro parlamentar. Todos aqueles que moverem uma palha — e, obviamente, isso inclui o gendarme da Casa, Arthur Lira (PP-AL) — para impedir que isso aconteça são coniventes com a apologia da tortura. Nesse caso, quem sai aos seus leva adiante o DNA da degeneração política, da truculência, da sordidez em seu estado mais bruto, da ignomínia. Seu pai, Jair Bolsonaro, é réu duas vezes no Supremo: por apologia do estupro e injúria. Infelizmente, o processo permaneceu no tribunal, cozinhando em água fria. E o biltre se tornou presidente da República. Se condenado a tempo, e havia tempo, não teria sido candidato porque teria perdido o mandato e se tornado inelegível. Quando se trata de defender a ordem democrática, a omissão sempre custa caro. Nesse caso em particular, o então, relator, Luiz Fux, permitiu que a defesa ditasse o ritmo do andamento do processo. O direito de defesa é sagrado. A indolência diante de chicanas não é.

A jornalista Miriam Leitão, numa coluna no Globo, escreveu um artigo cujo título é "Única via possível é a democracia". É evidente que concordo com a tese do texto, embora haja discordâncias em aspectos laterais. Miriam aponta similaridade entre as propostas de Lula, Bolsonaro e Ciro para a Petrobras, por exemplo. Relembra a corrupção havida na empresa — e houve — e expõe outras divergências com postulantes à Presidência, destacando que o próprio Lula a criticou em recente encontro com petroleiros. Mas destaca com absoluta correção: "O problema dos candidatos da terceira via é a falta de clareza sobre a base das suas propostas. Os projetos têm se apresentado por oposição e não por definição. O que é a terceira via? Se a resposta do político for que é uma alternativa a dois extremos, já errou. Como escrevi neste espaço em maio de 2021, não há dois extremistas na disputa, mas apenas um, Jair Bolsonaro."

Quem me acompanha aqui, na Folha ou no programa "O É da Coisa", da BandNews FM, sabe que, nesse particular, é precisamente essa a minha opinião, razão por que rejeito, igualmente, a tese da "polarização". A palavra não pode ser empregada porque Bolsonaro é um polo: o de extrema direita. Mas onde está o de extrema esquerda? Certamente não é Lula. Desde que o ex-presidente recuperou seus direitos políticos, saltando depressa para a ponta das pesquisas, e que começou essa conversa enjoada de "terceira via", cravei a expressão "nem-nem", que tomei emprestada a um semiólogo, Roland Barthes, para ironizar essa construção amalucada, que chamei também de "quimera da dupla negação". Igualar, como têm feito, inclusive, setores da imprensa um político fascistoide, escancaradamente golpista, com quem respeita as regras do jogo ATÉ QUANDO O JUIZ É INCOMPETENTE E SUSPEITO é uma mentira asquerosa.

Miriam evidenciou essa desigualdade de postulações em seu texto. E como Eduardo Bolsonaro respondeu? No Twitter, ele compartilhou a imagem da coluna e escreveu: "Ainda com pena da..." e acrescentou o emoji de uma cobra. Se há quem ainda não tenha entendido: Miriam foi presa durante a ditadura. Estava grávida. Foi torturada. Um dos meios empregados foi aterrorizá-la com uma cobra. Que tipo de gente faz isso? Quem pode condescender com tal indignidade? Que Parlamento é esse capaz de abrigar quem, na prática, defende aquele ato e ainda faz chacota da vítima?

DEFEITOS IMPERDOÁVEIS
Sim, sabemos: segundo a metafísica influente no bolsonarismo, Miriam tem alguns defeitos que são irreparáveis no ambiente sórdido em que circula essa gente. O primeiro -- e jamais desprezem esta questão: é mulher. A misoginia entre os fascistoides que cercam o presidente é parte constitutiva de uma visão de mundo. Para servir ao projeto, as mulheres ou devem se prestar à caricatura, como Damares Alves -- e ela exerce seu papel como ninguém --, ou devem exercitar a seu trabalho em silêncio obsequioso. Nesse caso, o modelo é a ex-ministra Tereza Cristina, da Agricultura. Tenho reservas a seu trabalho. Mas desmontou muitas bombas que a logorreia irresponsável da macharia triunfante armou. E o fez na mudez. Mulheres não devem ter a ambição a uma voz.

O segundo defeito de Miriam, aos olhos da delinquência em curso, está em sua origem de esquerda. O notável é que essa canalha nem sabe direito o que e do que fala. Não importa. Não faz sentido elencar opiniões da jornalista para evidenciar que seu esquerdismo ficou no passado porque poderia sugerir que, mantivesse ela, ainda hoje, as opiniões da juventude, então o ataque seria justificado. Aos olhos da canalha, até João Doria faz o jogo das esquerdas. A pecha é só um instrumento de demonização dos críticos e serve para manter as milícias digitais mobilizadas.

E, claro!, a terceira característica insuportável está no fato de que Miriam é crítica do governo. E eles transformam em alvos todos aqueles que não rezam segundo a sua cartilha. Sendo quem são, mostram-se particularmente violentos quando o alvo é uma mulher. No caso em particular, Eduardo enfeixou os três ódios para fazer a apologia da tortura e da ditadura.

Ninguém pode ser torturado, não importa o gênero. Quando, no entanto, a violência atinge uma mulher grávida, então somos informados de que essa gente não reconhece limites de qualquer natureza. Eduardo é o político que promove no Brasil congressos de uma certa entidade que se diz defensora do "conservadorismo". Todos por lá são unânimes em condenar o aborto, por exemplo, causa que usam como mero instrumento de propaganda. O crítico radical do aborto, como se vê, faz chacota de uma mulher grávida que foi submetida á tortura.

Há a questão política para a Câmara. E há a penal, a que deve responder a Procuradoria Geral da República. E aí, Augusto Aras, até onde vai a sua concepção de "liberdade de expressão"?

A QUESTÃO SE ESCANCARA
Estou cansado de ler no colunismo "nem-nem" o raciocínio pusilânime, segundo o qual Lula e Bolsonaro são males distintos, porém combinados, buscando uma equivalência entre os dois, em defesa da tal "terceira via". Como se vê mais uma vez, trata-se de uma análise mentirosa, covarde e, se quiserem saber, condescendente com um governo fascistoide.

Sim, Miriam já me criticou uma vez de modo que me pareceu impróprio, e eu respondi. O meu passado de dissensões com o PT é conhecido. E não estou, em caso nenhum, propondo a paz universal kantiana. A questão é saber o que é e o que não é admissível na disputa política e nas divergências ideológicas. Os candidatos à terceira via que aí estão já tiveram a chance, em 2018, de dizer: "Não gosto do PT, mas entendimento com Bolsonaro é impossível porque ele ameaça a democracia". Não disseram. Ao contrário: aliaram-se a ele no segundo turno.

Agora, repete-se, ainda que de outro modo, a fantasia de que estamos lidando com males distintos, mas equivalentes, que devem, como disse Sergio Moro, ser repudiados por "brasileiros de bem". Eu até poderia notar que gente de bem não vira serviçal de Bolsonaro, mas deixo isso pra lá em benefício da chance que têm as pessoas de aprender alguma coisa.

Há gente, para ficar em frase conhecida, que não aprende nada nem esquece nada. Não! No que respeita ao regime democrático, não há equivalência possível entre Lula e Bolsonaro. Com efeito, a "única via possível é a democracia". E isso ninguém da terceira via disse até agora. Ficam no ridículo e absurdo "nem-nem". E, ao não dizê-lo, concorrem para normalizar delinquências como a de Eduardo Bolsonaro, um inegável filho de seu pai.

E o colunismo que se nega a fazer a distinção se torna igualmente cúmplice.

Segue trecho de "O É da Coisa" de 20 de julho do ano passado sobre as falsas equivalências.