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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Arranjo: Silveira solto, com mandato e inelegível. Bolsonaro não vai parar

Um urubu de verdade em frente ao Supremo. Não representa risco nenhum. Já os metafóricos, que espreitam o tribunal, são um perigo para a democracia - Dida Sampaio/AE
Um urubu de verdade em frente ao Supremo. Não representa risco nenhum. Já os metafóricos, que espreitam o tribunal, são um perigo para a democracia Imagem: Dida Sampaio/AE

Colunista do UOL

27/04/2022 05h32Atualizada em 27/04/2022 16h35

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Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, já se manifestaram, respectivamente, sobre a cassação do mandato de Daniel Silveira (PL-RJ) e a graça concedida por Jair Bolsonaro ao deputado. O primeiro afirma que o assunto cabe à Câmara; o segundo entende que indulto e graça são prerrogativas do presidente da República. Lira não inova. Em 2013, maioria do próprio Supremo mudou decisão de 2012 e entendeu que, havendo condenação em ação penal, vale o que está escrito no Parágrafo 2º do Artigo 55 da Constituição, a saber:

"§ 2º Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa."

O Inciso VI que aparece acima trata justamente da "condenação criminal em sentença transitada em julgado". É uma das confusões da Carta porque o caput do Artigo, combinado com esse Inciso VI, diz que "perderá o mandato o deputado ou senador que sofrer condenação em sentença transitada em julgado". Mas aí vem o tal Parágrafo 2º a exigir maioria absoluta do plenário para que se efetive a cassação.

Como, a rigor, esse ainda é o entendimento vigente no Supremo — já que não houve novo julgado a respeito —, basta que o tribunal referende esse entendimento, e caberá à Câmara decidir o que fazer com o mandato de Silveira, aquele que gravou um vídeo sobre a necessidade de surrar os ministros do Supremo, entre outras delicadezas.

É claro que a manutenção do mandato nesse caso é um absurdo porque o Artigo 15 da Constituição também suspende os direitos políticos do condenado pelo tempo que durar os efeitos da condenação. E se teria, imaginem!, um deputado ou senador sem direitos políticos, o que seria uma aberração. De toda sorte, reitere-se, houve tal julgado em 2013.

Se Silveira fosse realmente preso em regime fechado, a Mesa estaria obrigada a cassá-lo, segundo o Parágrafo 3º, porque ele deixaria "de comparecer à terça parte das sessões ordinárias". Tudo indica, no entanto, que ele não será preso.

PRISÃO?
O esforço de Pacheco também vem em favor dos panos quentes. E é bom que fique claro a todos que Jair Bolsonaro não vai parar. Essa é só a véspera da próxima crise. É provável que o próprio Supremo acabe absolutizando a prerrogativa presidencial de instituir o indulto e a graça e, na prática, extinga a pena do deputado que ameaça o Poder Judiciário com um novo AI-5.

A decisão do presidente, já se mostrou neste espaço mais de uma vez, é absolutamente inconstitucional e ilegal. O desvio de finalidade é escancarado, ficando patente que o ânimo que move o decreto é o confronto com o Supremo, violando a independência entre os Poderes e impedindo o livre exercício do Judiciário.

Não é menos claro, ademais, que o candidato à reeleição conta com esse confronto para tentar elevar ainda a mais a temperatura. O Poder Judiciário não é exatamente um ente popular. Bolsonaro quer se colocar como uma espécie de cavaleiro a liderar um movimento em favor da "verdadeira justiça". É um modelo que a extrema direita segue no mundo inteiro. A este interessa que as eleições de outubro se deem num ambiente convulsionado.

O ex-presidente Lula, que lidera as pesquisas de opinião, criticou o decreto da graça, mas, com prudência, decidiu não liderar uma cruzada contra a decisão. Os partidos de oposição reagiram recorrendo ao Supremo com Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), cuja relatora é Rosa Weber. Também esta resolveu desacelerar os fatos e pôr compressas de água fria na confusão. Não concedeu a liminar pedida pelos peticionários — o que tornaria o decreto sem efeito desde já, aguardado o julgamento em plenário — e deu até dez dias para Bolsonaro se explicar. E abriu vista de cinco para AGU e PGR. Tenta pôr um pouco de câmera lenta na agitação bolsonariana.

Há no ar um cheiro — até como reação considerada prudente — de que se vai reconhecer "a prerrogativa presidencial da graça", apesar de todas as evidências de que Bolsonaro atua para afrontar o Supremo e para proteger um amigo, o que também agride o Artigo 37 da Constituição, segundo o qual "a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência".

O decreto não é legal nem impessoal ou moral.

INELEGIBILIDADE

Como o decreto de Bolsonaro pretende anular os efeitos primários (prisão) e secundários (inelegibilidade) decorrentes da condenação, é provável que seja considerado parcialmente ilegal.

A Súmula 631 do STJ é clara:
"O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais."

Condenado por um colegiado, Silveira está inelegível pela Lei da Ficha Limpa, e o espaço para recurso é o TSE. A graça nada pode em matéria eleitoral.

Sim, os bolsonaristas já colecionam pareceres — e pareceres podem prometer até a volta do amor verdadeiro em três dias — segundo os quais, não tendo havido a condenação, então não houve efeitos secundários. Ocorre que, sem a condenação, então se teria a estranha modalidade da graça prévia.

Ainda que concedida a graça sem o trânsito em julgado, o que confere materialidade ao ato de Bolsonaro é a condenação manifesta. Logo, extinga-se, em atendimento ao decreto, a prisão — o que já é uma aberração —, mas não a inelegibilidade.

ÁGUA NA FERVURA

Parece que é assim que se vai tentar jogar água na fervura. Atento àquele Parágrafo 2º do Artigo 55, duvido de que a Mesa encaminhe ao plenário a cassação de Silveira. Mas partidos políticos de oposição podem reivindicá-lo. Se acatada a petição pela direção da Casa, a coisa vai a julgamento. E seriam necessários pelo menos 257 votos para a Câmara se livrar do cara. Não creio que existam.

Quanto à extinção da prisão, parece que o Supremo caminha para "reconhecer" a prerrogativa presidencial de tomar tal decisão, mas não de violar a Súmula 631 do STJ e a Lei da Ficha Limpa. Silveira não iria para a cadeia, continuaria deputado até o fim do mandato, mas não poderia se candidatar a senador pelo Rio — uma de suas pretensões.

CONCLUINDO

Encerro lembrando que a Constituição Brasileira não reconhece ato ou competência infensos ao crivo da Justiça. Convém notar: o decreto da graça é escancaradamente abusivo e faz do presidente o juiz dos juízes. Se reeleito, já terá experimentado o gosto, o que é um perigo. Se um outro sucedê-lo, pode querer percorrer os mesmos transes da ventura, não é mesmo? E com que justificativa se diria a ele que não?

E, a exemplo de muitas outras vezes, o "Mito" não se dará por satisfeito. A sua "democracia" não contempla a independência entre os Poderes nem o triunfo dos valores da Constituição de 1988.