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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Leia por que a ação de Bolsonaro contra Moraes é ridícula. E o truque tonto

Alexandre de Moraes e sua cara de pânico ao ficar sabendo da notícia-crime apresentada contra ele por Bolsonaro...  - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Alexandre de Moraes e sua cara de pânico ao ficar sabendo da notícia-crime apresentada contra ele por Bolsonaro... Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Colunista do UOL

18/05/2022 06h55Atualizada em 18/05/2022 18h24

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Só o desespero eleitoral, que lhe impõe criar factoides para manter unida a sua tropa nas redes sociais, justifica a mais recente sandice de Jair Bolsonaro: entrar com uma notícia-crime no Supremo, por intermédio de um advogado privado, contra o ministro Alexandre de Moraes, acusando-o de atos que caracterizariam abuso de autoridade (Lei 13.859). As contas do próprio presidente nas redes sociais anunciaram o feito ontem à noite. Um dos principais alvos da peça de propaganda — já que não se relata notícia-crime nenhuma, mas só especulações sem fundamento — é o inquérito 4.781, conhecido como "das fake news", aberto de ofício no dia 14 de março pelo então presidente do tribunal, Dias Toffoli. Ah, sim: Toffoli é o relator do troço, assinado pelo advogado Eduardo Reis Magalhães, do Paraná.

Embora busque afetar uma linguagem elevada, fica difícil disfarçar a falta de fundamento da ação e seu caráter de provocação, uma vez que se esforça para apontar crime onde há apenas exercício regular das funções de um juiz. Em 21 páginas, Moraes é chamado de "noticiado" nada menos de 32 vezes. Parece tratar-se de um esforço estilístico para caracterizar o ministro como um notório descumpridor da lei. Chega a ser patético.

É tal a paixão pela palavra que o doutor comete um erro: no item 3 do Item VI, em vez de se referir a Bolsonaro como "noticiante", trata-o por... "noticiado". Moraes é uma das obsessões do presidente.

Bolsonaro acusa o ministro de ter incorrido nas seguintes práticas previstas na lei que pune abuso de autoridade:

  1. duração não razoável da investigação;
  2. negativa de acesso aos autos;
  3. prestar informações inverídicas em juízo;
  4. exigir cumprimento de medidas sem amparo legal;
  5. instauração de inquérito sem justa causa

1 - A DURAÇÃO
O advogado que redigiu a peça acusatória em nome de Bolsonaro sabe que o juiz determina, na prática, a duração de um inquérito no caso de não haver prisões. Em sua peça, evoca o Artigo 230-C do Regimento Interno do Supremo, que estabelece o prazo de 60 dias e expressa inconformismo com a duração do inquérito das "fake news". Esqueceu de citar o Parágrafo 1º de tal artigo, a saber:

"O Relator poderá deferir a prorrogação do prazo sob requerimento fundamentado da autoridade policial ou do Procurador--Geral da República, que deverão indicar as diligências que faltam ser concluídas". SEM PRAZO.

Ciente de que assim é, argumenta-se que, se a instrução de uma ação penal não pode durar mais de dois anos, então o prazo do inquérito deveria ser ainda menor. É uma opinião e uma tese, não uma lei.

2 - ACESSO AOS AUTOS
Bolsonaro acusa Moraes de ter dado acesso aos autos, no inquérito das "fake news", apenas ao "Apenso 70", que a própria peça acusatória admite tratar das pessoas investigadas. Nada impõe -- muito pelo contrário -- que investigações ainda em curso sejam tornadas públicas. Isso é um fundamento consagrado. E quem decide este "em curso"? Aquele a quem cabe decidir: o juiz -- no caso, Moraes.

Não havendo argumentação legal, resta a opinião de quem redige a peça, em nome de Bolsonaro:
"Não é crível admitir que, após mais de três anos de investigações, ainda existam diligências em curso que tenham o condão de impedir a vista de todo o encarte processual por parte das defesas".

É uma opinião e uma tese, não uma lei.

3 - PRESTAR INFORMAÇÕES INVERÍDICAS EM JUÍZO
É uma acusação grave, que vai além da simples diferença de interpretação sobre diplomas legais,

Trata-se de uma exacerbação retórica, que se desdobra a partir da acusação anterior. Como o ministro afirmou que as respectivas defesas dos investigados tiveram acesso aos autos que podiam ser acessados e como Bolsonaro, por intermédio de seu defensor, avalia que não, então se parte para o confronto: Bolsonaro e seu advogado estão dizendo que o ministro mentiu de forma deliberada. E creio que isso tem um peso específico.

4 - CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SEM AMPARO LEGAL
A aberração, como se sabe, não é assinada pela Advocacia Geral da União. O curioso é que, nesse particular, o presidente decidiu atuar como advogado daqueles que, investigados no inquérito das "fake news" (4.781) e/ou no das "milícias digitais", tiveram proibido o acesso a redes sociais.

Diz a peça acusatória, sempre lembrando que o "noticiado" é Moraes:
"Olhos postos nos autos, verifica-se que, em 26.05.20, o ora Noticiado determinou - de modo amplo e irrestrito - o bloqueio "de contas em redes sociais, tais como Facebook, Twitter e Instagram, dos investigados", sendo que tal medida seria necessária para "a interrupção dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática". Contudo, tal medida não encontra amparo legal no que dispõe o art. 319 do Código de Processo Penal e, na extensão em que foi decretada, contraria o que prevê o art. 19, §1º, da Lei nº 12.965/14. Logo, trata-se de medida atípica e ilegalmente extensa."

Ainda que Bolsonaro esteja tentando defender Allan dos Santos e outros, é preciso ter um pouco de modéstia no desatino. Tenho muitos amigos advogados. Alguns já pegaram causas difíceis, impossíveis de vencer, porque: a) todos têm direito a um advogado, e isso é um fundamento da civilização democrática; b) grandes profissionais se fazem na adversidade. Mas eles me dizem: é preciso tentar evitar o ridículo.

O Artigo 319 do Código de Processo Penal, que traz as medidas cautelares, é de 2011, quando as redes sociais não tinham o peso que têm agora. Mas o contínuo atento de um escritório de advocacia perceberia que a restrição de acesso às redes sociais está nos Incisos II e III do referido artigo:
II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;

III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante.

Imaginem a hipótese ridícula: alguém cumpriria medida cautelar, sendo proibido de frequentar determinados lugares ou de manter contato com determinadas pessoas, mas com amplo acesso às redes sociais...

Que parte Bolsonaro e seu advogado fingem não entender?

5 - INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO SEM JUSTA CAUSA
A pendenga aí diz respeito à inclusão de Jair Bolsonaro no inquérito das "fake news", a pedido do Tribunal Superior Eleitoral, em consequência da "live" em que anunciou a apresentação de provas de fraude nas eleições. Não havia prova nenhuma. Na opinião do próprio Bolsonaro e de seu advogado, ele apenas exerceu a liberdade de expressão, ancorando-se em opinião -- e também é uma opinião! -- da Procuradoria Geral da República. Ocorre que o Ministério Público é determinante, e sua posição é mandatária, na abertura de ação penal. A PGR não tem competência para encerrar um inquérito.

A PGR também é evocada em outro momento, quando se censura o ministro por ter encerrado o Inquérito 4.828, dos atos antidemocráticos, e aberto, em seguida, o 4.874, das milícias digitais. A PGR, de fato, anunciou que não ofereceria denúncia contra ninguém porque não via crime nenhum... Ocorre que lá estavam os milicianos digitais, que o órgão preferiu ignorar. E Moraes abriu a nova investigação. Acertadamente.

SUSPEIÇÃO?
É evidente que esse troço não vai dar em nada.

Bolsonaro está apenas alimentando seus canibais.

Tão logo ele próprio anunciou nas redes a notícia-crime contra Moraes, uma de suas lorpas nas redes sociais comemorou, com ar de triunfo: como Bolsonaro estaria processando o ministro, então este estaria automaticamente impedido de julgar qualquer coisa que dissesse respeito ao presidente porque suspeito.

Já imaginaram? Para se livrar de um juiz, bastaria processá-lo. Pô, o PT poderia ter pensado nisso antes, né?, e ter afastado Sergio Moro da coisa toda.

Ocorre que ASSIM NÃO É.

Define o Artigo 256 do Código de Processo Penal:
"A suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la.

Define o Inciso I do Parágrafo 2º do Artigo 145 do Código de Processo Civil:
"Será ilegítima a alegação de suspeição quando houver sido provocada por quem a alega".

ENCERRO
Bolsonaro está querendo dizer: "Estou tentando de tudo para não dar um golpe; até recorro à Justiça".

Recorrer à Justiça é um direito de todo cidadão. Tentar dar golpe é coisa de criminoso.

O primeiro ato rende, no máximo, um "não". Para o outro, há a cadeia.