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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Shows milionários: Anitta, a que não é de cera, dá nome a bois e a bananas

Presenças de Anitta: cantora, mais uma vez, entra certo no debate. Ministério Público tem de investigar  - Jamie McCarthy/Getty Images
Presenças de Anitta: cantora, mais uma vez, entra certo no debate. Ministério Público tem de investigar Imagem: Jamie McCarthy/Getty Images

Colunista do UOL

06/06/2022 07h34

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A Anitta do Museu Madame Tussauds de Nova York não se expressa em palavras. Mas a modelo que inspirou o trabalho fala. Em entrevista concedida ao Fantástico no dia da inauguração de sua estátua, na quinta, a cantora afirmou sobre propostas indecorosas que sua equipe já recebeu para a contratação de shows:
"A gente que é da música sempre soube que isso existia. Já recebi propostas, eu e o meu irmão. 'Você cobra tanto, aí eu vou pegar um pedaço'. Eu sempre falei: 'Não, Renan, o meu cachê é meu cachê'. Na época, eram 100 [mil] e poucos, mas aí ele vai dar mais um pouco, se você declarar que recebeu não sei quanto. E eu: 'Querido, meu cachê é esse. Quer assim? Não quer assim? Como a gente começou a nossa empresa do nada, a gente está sempre contratando auditoria, porque a gente está sempre com medo de fazer algo por falta de conhecimento".

Eis aí. A artista trata, querendo ou não, de uma das linhas de investigação que têm de ser adotadas pelo Ministério Público dos Estados no escândalo que envolve shows de artistas sertanejos — e assemelhados — e algumas cidades pobres do interior do Brasil.

Anitta trata de uma das formas, vamos dizer, "consagradas" de desvio de recursos públicos, seja para a construção de obras, seja para a contratação de serviços terceirizados: o sobrepreço, que depois é rachado entre contratante e contratado. Isso está em curso nos valores escandalosos dos shows de alguns artistas? Não sei. É preciso investigar.

O que se pode afirmar, sem medo de errar, é que os cofres de cidades pequenas estão sendo dilapidados nessas contratações, ainda que, muitas vezes, se tente justificar o despropósito com a alegação de que os artistas vão participar de eventos comemorativos.

OS SEM-BOI FINANCIAM OS COM-BOI
Há ainda uma outra modalidade de apropriação, pelos ricos, do dinheiro dos pobres. O deputado federal André Janones (Avante-MG), por exemplo, destinou R$ 1,9 milhão das chamadas "emendas cheque em branco" para o pagamento de sertanejos que vão cantar na Expopec -- exposição de novas tecnologias voltadas ao desenvolvimento da pecuária -- de Ituiutaba, sua cidade natal e base política original.

Não é raro, também quando a contratação é feita por Prefeituras, que eventos que são do interesse do agronegócio — e que, pois, deveriam ser financiados com recursos dos empresários interessados — acabem sendo financiados com dinheiro público.

Trata-se de uma fórmula fabulosa que se torna um emblema da apropriação, pelos ricos, do dinheiro dos pobres: os sem-boi, os sem-terra e os sem-salário pagam para que os com com-boi, com-terra e com-as-burras cheias façam seus negócios. Países desenvolvidos distribuem renda e buscam eliminar a pobreza. Países atrasados preferem concentrar renda e, sempre que possível, eliminar os pobres.

Na festa a que Janones destinou dinheiro vão cantar, entre outros, Gusttavo Lima e Zezé di Carmargo e Luciano, notórios bolsonaristas. Ainda que o candidato de todos eles fosse o Nazareno, seria inaceitável. Alguém seria capaz de justificar que os interessados em "novas tecnologias da pecuária" precisam mais do R$ 1,9 milhão do que as crianças pobres Ituiutaba? "Ah, mas a população vai comparecer aos shows..." Claro que sim! E vai aplaudir os caras. Se esse tipo de apropriação de recursos dos pobres pelos ricos não rendesse resultados políticos, não seria posto em prática.

É por isso que é chegada a hora de o Ministério Público — também o federal nesse caso — entrar em ação.

O CASO DAS PREFEITURAS
O caso de Gusttavo Lima chama especialmente a atenção em razão do valor dos cachês. E intriga de várias maneiras. Foi noticiado com pompa, em todo canto, que um fundo de investimentos, o Four Even, comprou 192 shows do cantor por R$ 100 milhões. Que se divirtam. Ninguém tem nada com isso. O caso passa a ser problema nosso quando o dinheiro público entra na parada. Eu tenho algumas curiosidades, e acho que uma investigação tem de, necessariamente, tentar respondê-las:
1: Por que os shows de Gusttavo Lima são tão mais caros do que os dos demais artistas?;

2: artistas igualmente consagrados pelo público cobram muito menos, com agendas não menos lotadas;

3: por que há tamanha disparidade nos preços de Gusttavo Lima quando confrontados com os preços de Gusttavo Lima? Não, leitor, eu não errei. É isso mesmo. Um show seu na menor cidade de Roraima, São Luiz, com apenas 8 mil habitantes, vai custar R$ 800 mil. Já em Conceição do Mato Dentro, em Minas, evento que foi cancelado, o cachê acertado era de R$ 1,2 milhão. Cantar em Roraima é mais barato do que cantar em Minas?;

4: quem acerta os shows e os preços de Gusttavo Lima? A sua empresa ou o fundo de investimento Four Even? No caso do evento em São Luiz, também vai se apresentar a dupla Cesar Menotti e Fabiano, outra contratada do fundo;

5: os R$ 800 mil são de Gustavo Lima. Não se divulgou quanto será pago aos demais. Prestem atenção! O PIB da cidade é de apenas R$ 147,7 milhões.

Já dá para ouvir a conversa mole de que eventos dessa natureza mobilizam a economia e acabam se pagando... Alguém acredita que uma cidade que tem esse PIB vai recuperar minimamente os gastos que estão sendo destinados à contratação dos sertanejos para a "tradicional vaquejada"? É uma piada!

ALÉM DA PISTA DE ANITTA, A IMPROBIDADE
O Ministério Público tem de investigar para valer os despropósitos em curso. Os valores são acintosos demais quando cotejados com o orçamento dessas cidades e os montantes são destinados a Saúde e Educação, por exemplo.

Saibam: a maioria das cidades brasileiras depende de repasses do Fundo de Participação dos Estados e do Fundo de Participação dos Municípios para sobreviver — e mal.

Em 2020, informou o site Poder 360, nada menos de 90% da receita de 2.268 municípios — dos 5.570 que há no país — vinham desses fundos de transferência. Vale dizer: os impostos pagos geravam, no máximo, 10% da receita. Outros 1.642 tinham uma dependência que ficava entre 80% e 90%. Estavam na faixa de 50% a 80% 1.027 deles. Só 42 disseram que mais da metade de sua receita deriva de impostos municipais. Os demais não forneceram os dados. Em que caso vocês imaginem que se situam São Luiz e Conceição do Matto Dentro?

Alguém realmente acredita que o valor milionário dos cachês voltará aos cofres públicos na forma de turismo ou impostos?

Atenção! Ainda que não se encontre nenhuma irregularidade na contratação dos shows e que não se verifique o "Rachadão do Sertanejo" — porque "rachadinha" não seria —, é evidente que se está diante de um caso escancarado de improbidade administrativa.

Mesmo com a nova redação dada à Lei 8.429 no ano passado, parece evidente que a contratação de tais shows, a valores estratosféricos, enquanto faltam calçamento, escolas, água etc., remete ao caput do Artigo 10:
"Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:"

"Mas haveria dolo, Reinaldo?" Alguém consegue negar que o agente público que faz essa contratação, dados os parcos recursos de que dispõe para fazer frente às urgências sociais, tem consciência de que está se descuidando, de forma deliberada e consciente, da probidade?

É preciso pôr um fim a essa vergonha e proceder à devida investigação. Ponto.