Topo

Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vítimas de uma política homicida de Bolsonaro, com conivência dos militares

Juliana da Silva, Lindomar da Silva e Leandro Lo. Sim, foram mortos por seus respectivos assassinos, mas também pela política homicida de Jair Bolsonaro - Reprodução
Juliana da Silva, Lindomar da Silva e Leandro Lo. Sim, foram mortos por seus respectivos assassinos, mas também pela política homicida de Jair Bolsonaro Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

08/08/2022 23h03

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A barbárie decorrente da multiplicação de armas de fogo no Brasil à esteira das mudanças na legislação promovidas por Jair Bolsonaro não é uma previsão, uma antevisão ou uma ilação lógica. Já está entre nós, já é um fato, já mata pessoas.

A vítima mais recente é o motorista de ônibus Lindomar Benedito da Silva, de 34 anos, assassinado pelo empresário Luís Paulo Lucateli Furlan, de 30, em Mogi Guaçu, em São Paulo.

Lindomar retornava na manhã de domingo de uma viagem a São João da Boa Vista, aonde tinha ido para ver os país. Às 5h30, colidiu o Gol que dirigia com um Honda Civic de Furlan, estacionado na rua. O empresário saiu de casa armado ao ouvir o barulho e achou que Silva intencionava fugir. Segundo a Polícia, ele confessou ter dado um tiro na direção do poste em que a vítima bateu em seguida.

A bala varou a lataria do carro em que estava Silva, atingindo-o nas costas. Está morto agora. Deixa mulher e três filhos.

Furlan é um CAC (Caçador, Atirador, Colecionador), a sigla que vai ganhando ares de maldição e se transformando em sinônimo de crime e morte no Brasil. Chegou a ser preso, mas foi solto, segundo seu advogado, 18 horas depois, mediante pagamento de fiança de R$ 15 mil.

A família do morto informa ter contratado um advogado porque não conseguia, inicialmente, nem mesmo os dados do Boletim de Ocorrência. "Não nos falaram nada na delegacia. Nem o nome dele nos passaram. Estão protegendo o assassino. A gente quer justiça, que ele fique preso. Ele pagou fiança e foi embora. A gente está em choque", disse à Folha a técnica de enfermagem Patrícia da Silva Bernardes, 25, irmã de Silva. "O que a gente sabe é que o atirador é um empresário influente da cidade. O cara, do nada, sai na rua, atira e mata um pai de família. Isso é absurdo. Soubemos que ele passou por audiência de custódia na parte da manhã, pagou fiança e foi liberado."

BABÁ TAMBÉM ESTÁ MORTA
No dia 29 do mês passado, em Teresina, uma briga entre cunhados resultou na morte de ambos. E há agora uma terceira vítima. O atirador desportivo Daniel Flauberth Gomes Nunes Leal, 38, saiu de sua casa para dar uma bronca no filho de Felipe Guimarães Martins Holanda, de 37, irmão de sua mulher. Moram no mesmo condomínio. A criança, que tem quatro anos e sofre de transtorno do espectro autista, estaria chorando muito.

No dia seguinte, o pai da criança teria aparecido em sua casa com uma faca para tirar satisfação. Sua irmã o atendeu e teria fechado a porta para evitar o confronto. Leal, então, teria ameaçado arrombá-la com chutes. O atirador não teve dúvida: pegou um 38 e disparou contra a dita-cuja, mas não acertou o cunhado. A bala se alojou na cabeça da babá Juliana da Silva, que brincava com as crianças na área comum de lazer. Ela morreu nesta segunda. Os dois se atracaram. Leal disparou um tiro contra a cabeça de Holanda e, tudo indica, acabou acertando a própria virilha por acidente. Um desentendimento familiar fez três cadáveres.

LEANDRO LÓ
Nesta segunda, foi enterrado o corpo do octacampeão de jiu-jítsu Leandro Ló Pereira do Nascimento, 33. Foi alvejado na cabeça no domingo pelo tenente da Polícia Militar Henrique Otavio Oliveira, 30 durante um show do grupo Pixote, no clube Sírio, na zona sul de São Paulo. O policial, que já enfrentou um inquérito policial-militar por agressão a colegas e foi condenado a prisão domiciliar em 2017, estava armado. Ló teria sido provocado pelo policial, ambos se desentenderam, e o lutador teria imobilizado o policial, mas sem agredi-lo. Este sacou a arma e disparou contra a cabeça do lutador.

BARBÁRIE ARMADA
Então voltemos. A barbárie armada se espalha no país, com o incentivo ao armamento. Está ocorrendo o que os sensatos anteviam, confirmando o que é um truísmo: quanto maior a circulação de armas, maior o número de eventos. Pessoas sem qualquer vinculação com o crime acabam, em razão de um ataque de fúria ou do consumo de álcool, resolvendo os problemas à bala.

Em 2018, um ano antes de Jair Bolsonaro chegar ao poder, havia 255.402 CACs no Brasil. Hoje, são 1.259.230. Os clubes de tiro saltaram de 151 em 2019 para 1.802 em 2021. Reportagem da Folha deste domingo informa:
"Os caçadores, atiradores e colecionadores --conhecidos pela sigla CAC-- têm aproveitado os decretos armamentistas publicados pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) para andarem armados mesmo quando não estão a caminho dos locais de prática de tiro ou caça. A Folha teve acesso a boletins de ocorrência da PRF (Polícia Rodoviária Federal) em que integrantes da categoria foram flagrados portando armamento em rotas irregulares, mesmo em estados onde não têm residência. Também há caso em que pessoas são flagradas armadas após uso de bebida alcoólica ou com droga."

Vale dizer: a suposta flexibilização do porte, nesses casos, é incentivo ao vale-tudo. Há também o aspecto político: Bolsonaro jamais escondeu que o incremento à posse de armas é, para ele, uma questão política. Vive a repetir que "povo armado não é escravizado", numa admissão tácita de que seu horizonte é mesmo a luta armada contra o que ele chama "o mal".

MAIS CRIMES COM ARMADAS DE FOGO
A escolha é de tal sorte absurda, deletéria, que o número de homicídios teve uma queda importante em 2021, mas com um dado surpreendente, como informou Carlos Madeiro no UOL:
"Em 2021, na contramão da queda de homicídios no país, cresceu 24% o número de assassinatos por revólveres, pistolas e garruchas --oficialmente classificadas como armas de fogo de mão, que se diferenciam das de maior calibre como espingardas ou fuzis, por exemplo. Os dados foram obtidos pela coluna no SIM (Sistema de Informação de Mortalidade), do Ministério da Saúde. Segundo o sistema, em 2021 o país teve uma redução de 13% no total de homicídios: no ano passado, foram 41.354 assassinatos classificados como agressão, contra 47.680 em 2020. Dessas, em 2021, 25 mil foram por arma de fogo não especificada no formulário do profissional de saúde. No mesmo período, porém, o número de mortos por armas de fogo de mão cresceu 24,5%: de 3.118 (2020) para 3.878 (2021). Todas as mortes por outros meios de agressão diminuíram."

Parece haver aí a forte sugestão de que, em muitos casos, a morte se deu apenas porque a arma estava disponível. E vidas se perderam, como vemos acima, por motivos banais. Uma briga de parentes, que eram vizinhos, resultou em três cadáveres.

CRIME ORGANIZADO
Sim, a política armamentista de Bolsonaro tem contribuído para espalhar armas e mortes entre pessoas que não integram facções criminosas. Uma divergência de opinião, um acidente de trânsito ou uma briga de família acaba redundando em tragédia.

Mas as escolhas do presidente põem risco também a segurança do país. Leiam trecho de reportagem de Marcelo Godoy, no Estadão:
"Vitor Furtado, o Bala 40, foi surpreendido pela polícia e pelo Ministério Público do Rio vendendo armas para bandidos. Em São Paulo, no bairro do Lageado, na zona leste, os policiais do Departamento de Narcóticos (Denarc) encontraram um arsenal com fuzil, carabina, duas pistolas e dois revólveres com Diego Izidoro, de 35 anos, acusado de participar de um esquema de lavagem de dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC). Em Uberlândia, em Minas, a Polícia Federal apreendeu na casa de um outro integrante do PCC duas carabinas, um fuzil T4, duas pistolas, uma espingarda e um revólver. Ocorridos em três Estados diferentes, esses não são casos isolados. Indicam antes uma nova forma de agir do crime organizado.

Mas o que todos esses fatos têm a ver? Todas as armas foram compradas legalmente por laranjas ou por criminosos com extensa ficha criminal que se registraram como colecionadores, atiradores ou caçadores, os chamados CACs. A porteira que Jair Bolsonaro abriu para a turma do lobby da bala em 2019 e em 2020 com decretos que alteraram trechos do Estatuto do Desarmamento, ampliando o acesso a armas de fogo potentes, a munições e ao porte, facilitou a vida das facções criminosas. O Senado chegou a aprovar um decreto para derrubar as medidas, mas Bolsonaro decidiu revogá-las para evitar uma derrota no Legislativo.

Em seguida, o presidente reeditou normas com efeitos semelhantes. Em 2020, alterou regras ligadas a Produtos Controlados pelo Exército Brasileiro (PCE) e à aquisição, ao registro, ao cadastro e à posse de armas. O Comando do Exército participou do movimento, revogando em abril de 2020 três portarias do Comando Logístico (Colog), órgão que administra armas e munições. Elas tratavam do transporte, do rastreamento, da identificação e da marcação de armas, munições e produtos bélicos."

ENCERRO
Assim morrem os brasileiros e assim se abrem as veredas para o crime organizado no Brasil. As Forças Armadas poderiam, dentro do seu papel institucional, ter resistido à tara armamentista de Bolsonaro. Mas cederam.

Alguns dos fardados preferiram ver problema nas urnas eletrônicas. Enquanto brasileiros morrem de susto, de bala ou vício.