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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na posse no TSE, Moraes leva República a dizer a Bolsonaro: "Não ao golpe!"

Na disposição das cadeiras, Bolsonaro, de cara amarrada, ficou frente a frente com Lula; no destaque, Carlos Bolsonaro, que nem se levantou nem aplaudiu ao fim do discurso de Alexandre de Moraes; seu pai também evitou as palmas - Mateus Vargas/Folhapress; Reprodução; redes sociais
Na disposição das cadeiras, Bolsonaro, de cara amarrada, ficou frente a frente com Lula; no destaque, Carlos Bolsonaro, que nem se levantou nem aplaudiu ao fim do discurso de Alexandre de Moraes; seu pai também evitou as palmas Imagem: Mateus Vargas/Folhapress; Reprodução; redes sociais

Colunista do UOL

17/08/2022 05h22

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Será que Jair Bolsonaro acabou caindo numa armadilha? Alguma trapaça do ministro Alexandre de Moraes? Vai ver o nome da arapuca caça-golpista atende pelo nome de "democracia". As cartas em defesa do estado de direito já haviam deixado claro ao candidato a tirano que virar a mesa do jogo não é tarefa corriqueira, que se opera com a simples convocação de arruaceiros. A posse de Moraes à frente do Tribunal Superior Eleitoral na noite desta terça evidenciou que as instituições, ainda que lanhadas pela atuação deletéria de um notório depredador da Constituição, resistem.

O ministro fez um discurso de posse luminoso. Não buscou nenhuma forma de acomodação com desordeiros e extremistas. Ao contrário: proclamou o triunfo da lei e fez as devidas distinções entre liberdade de expressão e crime; entre a divergência, razão de ser da democracia, e a delinquência. Falava para Bolsonaro? Eis o aspecto, digamos, absurdo de noite tão memorável: seu discurso faz a apologia do pacto civilizatório. Se a palavras afrontam o presidente da República, então se desenhava ali, em momento solene, mais um retrato do mandatário.

NÃO SE É LIVRE PARA DESTRUIR A DEMOCRACIA
Moraes, e nem poderia ser diferente, fez uma veemente defesa da liberdade de expressão, notando que ela é protegida pela Constituição, mas isso não exclui que as pessoas sejam responsabilizadas caso comentam algum crime. Afirmou:
"É a plena proteção constitucional da exteriorização da opinião, que não permite censura prévia pelo poder público. Entretanto, essa plena proteção constitucional da exteriorização da opinião não significa impunidade, não significa a impossibilidade posterior de análise e responsabilização por eventuais informações injuriosas, difamantes, mentirosas, fraudulentas, pois o direito à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas."

Nestes dias, em que criminosos apelam à liberdade de expressão para propagar discurso de ódio, o presidente do TSE fez as devidas distinções:
"A Constituição Federal não permite, inclusive em período de propaganda eleitoral, a propagação de discursos de ódio, de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático, tampouco a realização de manifestações pessoais - sejam nas redes sociais ou por meio de entrevistas públicas - visando o rompimento do Estado de Direito, com a consequente instalação do arbítrio.

A Constituição Federal consagra o binômio liberdade e responsabilidade, não permitindo de maneira irresponsável a efetivação do abuso no exercício de um direito constitucionalmente consagrado, não permitindo a utilização da liberdade de expressão como escudo protetivo para a prática de discursos de ódio, antidemocráticos, ameaças, agressões, violência, infrações penais e toda sorte de atividades ilícitas."

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E LIBERDADE DE AGRESSÃO
Obviamente é lícito que indivíduos se organizem para mudar leis, inclusive disposições da própria Constituição, mas a democracia não protege a ação daqueles que querem solapá-la. Assim, não há de se confundir "liberdade de expressão" com "liberdade de agressão", a saber:
"Eu não canso de repetir e, obviamente, não poderia deixar de fazê-lo nessa oportunidade, nesse importante momento: liberdade de expressão não é liberdade de agressão. Liberdade de expressão não é liberdade de destruição da democracia, de destruição das instituições, de destruição da dignidade e da honra alheias. Liberdade de expressão não é liberdade de propagação de discursos de ódio e preconceituosos. A liberdade de expressão não permite a propagação de discursos de ódio e ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito, inclusive durante o período de propaganda eleitoral, uma vez que a plena liberdade do eleitor em escolher o seu candidato, sua candidata, depende da tranquilidade e da confiança nas instituições democráticas e no próprio processo eleitoral."

ARMADILHA OU ACORDO?
Como é que Jair Bolsonaro foi parar naquela solenidade? Presidentes da República são sempre convidados para eventos dessa natureza, o que me parece correto. Desta feita, Moraes e Ricardo Lewandowski, seu vice no tribunal eleitoral, levaram o convite pessoalmente ao mandatário. Alguns quiseram ver nisso um ato de sujeição. Apontei a tolice da suposição no programa "O É da Coisa", na BandNews FM. Também critiquei uma nova onda de boatos, segundo a qual Moraes teria aceitado estabelecer uma espécie de "acordo" extrajudicial com o presidente da República.

Moraes foi além da burocracia que junta as respectivas cúpulas dos Três Poderes em momentos assim — e elas estavam lá. Convidou os ex-presidentes, candidatos à Presidência, governadores, prefeitos. As instâncias do Estado Brasileiro, em suma, ouviram um potente discurso em defesa da ordem democrática.

É evidente que Moraes não preparou nenhuma armadilha para Bolsonaro. Bem pensando, esperava-se que dissesse o quê? Eu lhes proponho aqui uma questão: que discurso poderia levar o presidente da República a aplaudir o ministro? Para que o chefe do Executivo se sentisse contemplado em suas invectivas, o que Moraes teria de dizer?

DIFERENÇAS
Pensem nas muitas diferenças que estavam naquele salão. O próprio Lula, atacado pela conta oficial do Twitter de Bolsonaro enquanto se dava o evento, dividia o teto com aquele que o desqualifica todos os dias. Dilma Rousseff e Michel Temer, rompidos, estavam na mesma fileira. José Sarney, ali presente, trazia a memória ainda da transição do regime militar para a democracia. Sob seu governo, instalou-se a Constituinte que deu à luz o texto de 1988. Fernando Henrique, com problemas de saúde, mandou uma mensagem. Presentes também 22 governadores das mais diferentes colorações partidárias, além de toda a cúpula do Judiciário, do Congresso e do Ministério Público.

Não se celebrava ali a paz universal kantiana. Sob o mesmo teto, havia pessoas inconciliáveis e irreconciliáveis. Mas com uma convergência: a defesa da democracia e do estado de direito. E, nesse caso, a voz discordante é mesmo a do presidente da República e de alguns que lhe servem de estafetas. Até Augusto Aras, procurador-geral, sempre tão disposto a entender os motivos de Bolsonaro e a condescender com os seus despropósitos, fez profissão de fé no cumprimento da vontade da urna.

Moraes não arrastou Bolsonaro para uma armadilha, mas para uma celebração em defesa da civilidade política. Se o presidente estava deslocado, carrancudo, bravo, isso só evidencia a sua incompatibilidade com a ordem constitucional.

CONTRA O VALE-TUDO
O novo presidente do TSE alertou ainda que não haverá tolerância com o vale-tudo. Disse:
"A intervenção da Justiça Eleitoral, como afirmei anteriormente, será mínima, porém será célere, firme e implacável, no sentido de coibir práticas abusivas ou divulgações de notícias falsas ou fraudulentas -- principalmente daquelas escondidas no covarde anonimato das redes sociais, as famosas 'fake news'. Assim atuará a Justiça Eleitoral de modo a proteger a integridade das instituições, o regime democrático e a vontade popular, pois a Constituição Federal não autoriza que se propaguem mentiras que atentem contra a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições."

Moraes foi ovacionado. Bolsonaro ficou imóvel. Carlos, seu filho, permaneceu sentado, com ar emburrado. Não aplaudiram nem por educação. E por que o fariam?