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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Que o país volte a ouvir apenas discursos ocos e sem importância histórica

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Colunista do UOL

17/08/2022 16h40

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Que dias estes!

Estivessem as coisas no lugar no ponto de vista institucional, a posse de um presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) seria apenas a posse de um presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Vamos lá: quanto menos conteúdo houver em solenidades desse tipo, melhor. "Como, Reinaldo Azevedo? Então deveria ter sido um desses eventos ocos, palavrosos, com substantivos e adjetivos rechonchudos na aparência, mas recheados de vento?" Sim, a metáfora é precisamente essa.

Países em que celebrações oficiais não deixam nem resquícios na história, passando quase despercebidos, evidenciam que as estruturas invisíveis do estado de direito estão em pleno funcionamento. As autoridades, na verdade, evitam avanços retóricos justamente porque operam na faixa das instituições. As diferenças e dissensões ficam para a arena política. É o momento em que se vive a ilusão do Estado neutro.

"Mas o Estado é neutro, Reinaldo?" Nunca é. Mas o trato da questão, insisto, se dá na arena dos embates políticos. Os que pretendem mudar a orientação que prepondera num determinado momento se dedicam ao convencimento das parcelas da população que constituem sua alavanca mudancista. E todos dão de barato que há uma espécie de instância empírea que deixa as dissensões do lado de fora. Finda a celebração, recomeça a luta.

INFLAMAÇÃO
A elevação da temperatura política na posse do presidente de uma corte qualquer -- especialmente se eleitoral, e temos uma -- evidencia que o modelo está doente; que está sendo atacado por patógenos. A febre institucional é a prova de que o sistema de defesa da República está reagindo ao agente estranho que o ameaça. O país está inflamado.

Então o ex-ministro Marco Aurélio Mello está certo, e Alexandre de Moraes exagerou no seu discurso? Não. Ele está errado, como quase sempre em anos recentes. Personagem de si mesmo, mas com seus interesses, como todo mundo, o ex-ministro sempre dosou críticas e elogios segundo o movimento das ondas. Já teve a sua fase de lua de mel com o petismo. Não era amor. Também não é agora. Voltemos.

O DISCURSO
Bem pensado, em outras circunstâncias, o discurso de Moraes seria até bastante convencional. Deixemos claros os seus pilares:
- saudou as autoridades presentes;
- exaltou o antecessor;
- disse que o respeito às instituições é o único caminho aceitável;
- elogiou a eficiência do sistema eleitoral que temos;
- exaltou a liberdade de expressão como apanágio da democracia;
- afirmou que liberdade de expressão não elimina a responsabilidade por aquilo que se diz;
- estabeleceu a distinção entre liberdade de expressão e liberdade de agressão;
- repudiou o discurso de ódio;
- prometeu, no que lhe compete, ser célere na punição a desvios.

Convenham: poderia ter sido um vistoso pastel de vento, não? E, no entanto, o discurso já nasceu histórico. A frequência com que foi interrompido por aplausos entusiasmados, que valiam como desagravos à democracia e, por certo, ao próprio ministro, era a demonstração maior de que o corpo da República está mesmo inflamado. E o patógeno principal estava presente: Jair Bolsonaro. Não aplaudiu. Permaneceu ali, carrancudo, impassível — ao menos naquele ambiente —, como a antítese de tudo o que dizia o novo presidente do TSE.

O BUSÍLIS
E aqui está o busílis: mas antítese do quê? Que parte, que trecho, que apreciação, que voo retórico de Moraes vão além dos fundamentos e das balizas da democracia e do estado de direito? Que "pegada" do ministro apela ao solipsismo jurídico, à leitura autocentrada das leis, a algum particularismo que esteja à margem do consenso civilizatório? A resposta é óbvia: à diferença do que diz Marco Aurélio -- que substitui os fatos pela provocação estúpida --, Moraes não avançou um miserável centímetro além da fronteira que separa o regime democrático da desordem, em que todos lutam contra todos em benefício de milícias que se apoderam do Estado.

Moraes fez história porque teve a coragem e a clareza de ser óbvio. Não temeu ofender os ouvidos de quem se dedica, toda as horas do dia e todos os dias do seu mandato, a atacar as instituições e o regime de garantias individuais e públicas erigido pela Constituição de 1988. Sim, é verdade: o ministro poderia, por respeito às tentações autoritárias e ao espírito despótico, ter afastado a defesa das urnas eletrônicas, ter evitado o tema das "fake news", ter ignorado a patranha dos que tomam crime por liberdade de expressão e liberdade de expressão por crime. Ora, ele não é, evidencia a história, esse tipo de covarde.

Volto à exclamação inicial: que dias estes em que o bom, o correto, o civilizado pode ser lido, de um lado, como reação civilizatória ao discurso da barbárie e da desconstituição do estado, e, de outro, como uma afronta! Os bolsonaristas, inclusive os que se fingem de jornalistas e colunistas, estão furiosos. Mas notem: são incapazes de isolar um trecho da fala do ministro que seria uma provocação a Bolsonaro. Limitam-se a apoiar seu chefe espiritual na certeza de que foi ofendido. Vale dizer: temos um presidente que toma a defesa da democracia como ofensa pessoal.

ENCERRO
Sim, Moraes protagonizou um momento histórico porque evidenciou o buraco moral, ético e civilizatório em que estamos. Suas corretas obviedades se transformaram em palavras de resistência. E é claro que ele sabia muito bem o que dizia.

Um dia, não sei quando — dependerá da vontade da maioria dos que votam — essa tragédia terá fim. Que o discurso de um presidente do TSE venha a ser, em futuro que espero breve, apenas o discurso de um presidente do TSE.

Precisamos de pasteis de vento. Serão a evidência de que as coisas estão no lugar. No momento, a covardia autoritária faz os Bolsonaros. E a defesa da democracia faz os Alexandres.