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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Não importa o que Nikolas faz na cama, e sim o que está aos olhos de todos

O ministro do Meio Ambiente Joaquim Leite em agenda na Serra da Canastra (MG) com o deputado federal eleito Nikolas Ferreira e o senador eleito Cleitinho Azevedo - Reprodução/Twitte
O ministro do Meio Ambiente Joaquim Leite em agenda na Serra da Canastra (MG) com o deputado federal eleito Nikolas Ferreira e o senador eleito Cleitinho Azevedo Imagem: Reprodução/Twitte

Colunista do UOL

12/10/2022 17h10

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Se o tal Nikolas Ferreira (PL-MG), ainda vereador e deputado federal mais votado do país em números absolutos, é gay, eis uma coisa de uma irrelevância danada. Ao menos deveria ser como expressão de sua honradez e caráter. Mas o assunto ganhou as redes porque ele pertence ao esquadrão que se arvora em fiscal dos corpos alheios e que vive a apontar o dedo acusador contra sexualidades que não compõem a maioria. E seu líder político, espiritual e moral, o reverendo Jair Bolsonaro, já pontificou:

"Outro dia falei que a mãe quer que o Joãozinho continue Joãozinho. 'Ah declaração homofóbica'. Meu Deus do céu! Para onde nós iremos cedendo às minorias? As leis existem, no meu entender, para proteger as maiorias. As minorias têm que se adequar".

Nikolas, o heterossexual, certamente concorda com o primado, o que significa que ambos ignoram o elemento central da democracia, cuja natureza é a proteção dos direitos de quem diverge, por condição ou escolha. A ninguém, maioria ou minoria, se assegura a prerrogativa de se impor pelo silenciamento ou pelo apagamento do outro. A fúria normativa, fascistoide, autoritária, que busca eliminar a diferença, é característica óbvia dos movimentos de extrema-direita. A sexualidade privada desse rapaz ou a de qualquer outra pessoa nem deveriam estar em pauta. Esquerda e direita, se de boa-fé, deveriam divergir apenas no que respeita aos instrumentos para efetivar a igualdade, nunca na constatação de que a discriminação existe e precisa acabar.

Deve-se destacar, sim, o fato de que a suposta homossexualidade de Nikolas também virou instrumento de desqualificação. E, por óbvio, reconheço que isso teria menos peso -- ou talvez nem tivesse vindo à luz -- não fosse o deputado eleito ser quem é; não fosse a sua espantosa agressividade no trato de adversários políticos. E não por pensarem o que pensam, mas por serem quem são. No Dia Internacional da Mulher, ele saudou em discurso as "mulheres XX", numa ataque à vereadora trans Duda Salabert. E disparou:
"E hoje, inclusive, eu vi que a Câmara chamou várias mulheres para compor a Mesa Diretora e, infelizmente, tinha um vereador. Eu não vou me submeter. Eu não vou ficar de joelhos perante a negação da realidade".

Submeter-se a quê? A vida lhe cobrava só um tanto de tolerância com o que não é ele, com o que é diferente dele. Mas quê... Viram-se rancor e violência gratuitos, posto que nada havia ali, não naquela hora, que o opusesse à vereadora Duda. Mas ele usou o seu mandato para tentar desqualificar uma pessoa por ser quem é, não por pensar o que pensa. "Ah, então ele merece que digam ser o ele o cara que aparece fazendo sexo oral em outro homem?" Não. Assim como ninguém merece ser alvo dos ataques protagonizados por esse rapaz. Obviamente não endosso o que se fez, mesmo que seja tudo verdade. Não endosso em caso nenhum, de lado nenhum. Observo, no entanto, que seu desespero decorre também dos valores e das fúrias que eles mesmos incitam.

FANTASMA DOUGLAS GARCIA
O fantasma do deputado Douglas Garcia (Republicanos-SP) deve tê-lo assobrado. Gay, o que só veio a público depois de eleito em 2018, não houve reacionarismo, do mais corriqueiro ao mais abjeto, que esse rapaz não tenha cavalgado. Passou a ser hostilizado por Eduardo Bolsonaro por razões que não estão claras. Sua campanha eleitoral, pretendente a uma vaga na Câmara Federal neste ano, foi das coisas mais asquerosas que já vi. Certa feita, este senhor chegou a dizer o seguinte sobre uso de banheiro feminino por uma trans:
"Se acaso dentro do banheiro de uma mulher que a minha irmã ou a minha mãe estiver utilizando um homem que se sente mulher [...] entrar no banheiro, eu não estou nem aí: eu vou tirar primeiro no tapa e depois chamo a polícia".

O problema principal não está em Garcia ser contra o uso. Notem o modo que escolheria para tratar da questão. Ele faz questão, aliás, de exibir os músculos de quem dedica muitas horas à malhação. Tudo o que diz e incentiva constitui elementos muito próprios da chamada masculinidade tóxica. Ele tentou ser um gay — tirado do armário meio à força, é verdade — entre os héteros (declarados ao menos) à moda bolsonarista. É o cara que protagonizou aquela baixaria contra a jornalista Vera Magalhães.

Pois bem: numa safra em que se elegeram notáveis reacionários — e Douglas não devia nada a eles em trogloditismo e estupidez —, ele obteve apenas 24.549 votos. Gostaria de pensar que o ataque a Vera não o ajudou. Mas os "minions" gostam de coisas assim. O bolsonarismo pode até conviver com o gay que se apresenta como caricatura ou anedota — ou ainda como adereço de primeira-dama —, mas não para representá-lo.

Os valores que Nikolas e Douglas propagam reforçam preconceito e discriminação, nunca integração. Não é que eles divirjam das esquerdas no modo de integrar as sexualidades divergentes à vida cotidiana. Tudo o que dizem hostiliza essas pessoas e busca o seu apagamento. Um bolsonarista retirado do armário não encontra com facilidade espaço na vida pública. "Mas por que, afinal, há pessoas que pertencem a minorias sociológicas (mulher é maioria numérica, mas não política) e são, ainda assim, bolsonaristas?" Bem, é preciso outro texto só dedicado a essa questão. Entendo haver componentes de ordem psicológica que podem, excepcionalmente, levar o oprimido à sujeição voluntária. Parece-me injustificável que uma mente sadia se sinta politicamente atraída por seu opressor. Mas fica para outra hora.

O NIKOLAS QUE INTERESSA
Não interessa com quem Nikolas se deite. Mas é bastante relevante o avião em que voa. O cara não assumiu ainda a vaga na Câmara, nem foi diplomado, e já pegou carona num jato da FAB, em voo solicitado pelo ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite. Estão em folguedos eleitorais por Minas Gerais. Os dois desembarcaram no aeroporto municipal José Figueiredo, em Passos, no sudoeste do Estado. Foram recebidos, informa Bela Megale no Globo, pelo deputado estadual Cleitinho Azevedo (PSC-MG), que foi eleito senador, e pelo deputado federal reeleito Diego Andrade (PSD). E dali partiram para uma ampla agenda de caráter eleitoral. Com dinheiro público.

À coluna, ele justificou assim a agressão explícita à Lei Eleitoral e ao claro exercício de improbidade administrativa:
"Não se trata de uma carona, carona pode se dar a alguém aleatório, fora de contexto, o que não é meu caso. Encaro essas situações como forma de aperfeiçoamento para meu mandato federal. O governo não terminou, enquanto ele estiver aqui, e me for oportunizada (sic) situações em que posso aprender para o bem do meu país, porque eu deveria me acomodar e ficar em casa apenas esperando minha posse, como muitos fazem?".

Pouco importa o que o Nikolas faz na cama. Importa é o que faz na vida pública. Não atua apenas para degradar o ambiente político, já bastante contaminado pela intolerância. Vê-se que pertence àquela safra de valentes que ignoram a essência de uma República. E bastante jovem. E se nota que aprende o que não presta com uma velocidade espantosa. Vamos ver até onde a impunidade o leva. Ninguém precisa apelar ao que faz escondido, pouco importa o quê, para revelar a sua natureza. Já basta o que está aos olhos de todos.