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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Se o Orçamento de Bolsonaro-Guedes é "exequível", então a democracia não é

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Imagem: depositphotos

Colunista do UOL

21/11/2022 07h40

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Na minha coluna de sexta na Folha, afirmei que Lula, presidente eleito, "está confrontando a herança maldita de Jair Bolsonaro e um Orçamento de mentira". E apontei lá os motivos. No domingo, o economista Samuel Pessoa, meu colega de colunismo no jornal, escreveu:

"O projeto de lei orçamentária anual (Ploa) para 2023 que Paulo Guedes enviou ao Congresso Nacional é inexequível? Não, o projeto é exequível. O que não é exequível são as promessas de campanha, tanto as do presidente Bolsonaro quanto as do presidente eleito Lula. Guedes deixará herança maldita na área fiscal? Não. Na área fiscal, a herança de Guedes é positiva. Em coluna publicada na quinta (17), Reinaldo Azevedo discorda de mim em relação às duas questões. Diz que o Ploa para 2023 é inexequível e que Guedes legará ao sucessor uma herança fiscal maldita."

Bem, os respectivos links do que escrevi e do que ele escreveu vão acima para o leitor verificar se quiser. Em primeiro lugar, não sou eu a discordar de Samuel, mas ele a discordar de mim. Não me referi a nada que ele tenha escrito em minha coluna; ele se referiu ao que escrevi na sua. Isso faz diferença. É como saber quem chamou quem para dançar. Em segundo lugar, classifiquei de "maldita" a herança de Bolsonaro, não a de Guedes, seu Leporello econômico, mas compreendo que o paulo-guedismo veja o presidente como mero apêndice da obra do gigante. Que coisa! O normal seria considerar que criticar Guedes é o mesmo que criticar Bolsonaro, não o contrário. Não havia dito, mas vá lá: a herança de Guedes é maldita também. Sigamos.

Para Samuel, "o Projeto de Lei Orçamentária (Ploa) de 2023 é exequível". E ele acrescenta: "O que não é exequível são as promessas de campanha, tanto as do presidente Bolsonaro quanto as do presidente eleito, Lula". A afirmação é espantosa porque, para que exequível fosse, e vou me ater aqui, de início, a duas questões (ainda falarei das demais), o Bolsa Família teria de ser mantido em R$ 400 e não poderia haver reajuste real do salário mínimo.

Assim, o significado da palavra "exequível" tem de ser submetido a um "aggiornamento" pessoano. O sinônimo "executável" não serve mais. Com efeito, tanto Lula como Bolsonaro prometeram manter em R$ 600 o Bolsa Família — o Ploa prevê R$ 405 — e o aumento real do mínimo. Nota rápida: sob a inspiração de Guedes, o presidente prometeu R$ 1.400 no segundo debate da Globo; Lula não falou em números no embate entre os dois, mas já estava claro que a referência era, e é, R$ 1.320. Sei lá o que Samuel entende por "exequível". O que sei é que a manutenção do R$ 600 do Bolsa Família e o reajuste real do mínimo tiveram 118.552.353 votos, assim distribuídos: 60.345.999 para Lula e 58.206.354 para Bolsonaro. Dizer a Samuel o quê? Para que a peça orçamentária seja "exequível", é preciso declarar a inexequibilidade da democracia. Quem topa?

Pergunto ao meu colega: qual seria o efeito social e político da redução do Bolsa Família (que tem o apelido de "Auxílio Brasil" até dezembro), a partir de janeiro, de R$ 600 para R$ 400? Samuel iria à praça explicar? Algo assim: "Meu bom pobre, temos de cortar mais de um terço do benefício porque, acredite, isso será bom para você no longo prazo". Poderia ouvir na hipótese benigna: "Ô Tio Samuca, eu preciso comer no curto prazo". Talvez o interlocutor tivesse de responder: "Você é um pobre incompatível com exequibilidade do Orçamento".

Samuel é um argumentador sempre lhano, o que não quer dizer que esteja livre de dizer enormidades. Até porque, no afã de defender a herança de Guedes, que parece considerar bendita, ele mesmo aponta como resposta a um desafio que fiz em minha coluna um artigo de Cláudio Frischtak, Marco Bonomo e Paulo Ribeiro, publicado no Globo. E, para minha estupefação, os autores evidenciam justamente que o Orçamento de 2023, como está, é INEXEQUÍVEL!

Escreve Samuel:
"Evidentemente o Orçamento de 2023 não prevê elevação do benefício do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, nem elevação real do salário mínimo ou manutenção das desonerações do PIS/Cofins. Em sua coluna, Reinaldo Azevedo demanda que os críticos das falas do presidente "apresentem o problema e também uma solução". Demanda mais do que justa. Na quinta, Cláudio Frischtak, Marco Bonomo e Paulo Ribeiro apresentaram em artigo em O Globo uma proposta para recuperar diversos programas sociais --zerar a fila do SUS, recompor os programas Farmácia Popular, merenda escolar e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, além da implementação da Lei Aldir Blanc --e, adicionalmente, garantir aumento real do salário mínimo de 1,4% e o novo programa Bolsa Família de R$ 600. O custo extrateto seria de R$ 80 bilhões em 2023."

Perceberam? O artigo de referência a que recorre Samuel prevê um furo no teto de quase R$ 80 bilhões — precisamente, no texto aludido, de R$ R$ 78,6 bilhões. Eu poderia dizer que estou um tanto confuso sobre o significado das palavras. Se Samuel considerou "justa" a minha demanda para que os críticos apresentassem solução e se a solução está no artigo que ele indica, há de admitir, pois, que se faz necessário furar o teto em pelo menos R$ 78,6 bilhões. Logo, o Orçamento, como está — PARTE DA HERANÇA MALDITA DE BOLSONARO E GUEDES — é inexequível.

OS DESCALABROS DO ORÇAMENTO DE 2023
Samuel destaca um pequeno superávit primário em 2021 (0,75% do PIB), o que deve se repetir em 2022, e aí vê a gloriosa herança de Guedes -- eu nem havia entrado nesse particular no meu artigo, mas me parece imperioso tratar do assunto. Para realizá-lo, concorreu, e o autor admite, o congelamento do salário dos servidores, cuja manutenção é insustentável. O Ploa prevê R$ 11,6 bilhões para a correção dos ganhos dos funcionários do Executivo -- R$ 14,2 bilhões se considerados os demais Poderes. Também é preciso contabilizar, na formação dos superávits, as receitas extraordinárias (neste ano, por exemplo, o aumento das commodities, especialmente petróleo, que elevou os dividendos da Petrobras) e a disparada da inflação, que engorda a arrecadação.

ORÇAMENTO-FANTASIA DO ANO QUE VEM JÁ PREVÊ DÉFICIT PRIMÁRIO
Para 2023, o Ploa já prevê déficit. A Receita Primária Líquida cai de R$ 1,844 trilhão para R$ 1,804 trilhão. A Despesa Primária Líquida, no entanto, sobe (ainda que os investimentos fiquem em petição de miséria) de R$ 1,831 trilhão para R$ 1,868 trilhão. Sabem o que isso significa? Já se tem a perspectiva, na "herança bendita de Guedes", de um déficit primário de 0,6% do PIB. Lembrando que o "primário" aqui quer dizer que não se leva em conta, no caso das receitas, a venda de títulos públicos e, no caso das despesas, amortização de dívida e pagamento de juros. Assim, para começo de conversa, não se deve partir de um superávit "X" neste ano (ainda não se sabe) para um déficit a ver, pelo qual Lula seria responsável. Nada disso! O Orçamento de Guedes-Bolsonaro para 2023, mesmo sem os R$ 200 a mais do Auxílio Brasil e o reajuste real do mínimo, já traz um déficit primário de 0,6%. Ainda que a dupla transforme a área social em terra arrasada.

O item "Despesas Discricionárias" do Orçamento 2023 tem uma queda geral em relação ao deste ano de 15%. Alguns itens: - 47% para Assistência Social; - 34,7% para Segurança Pública; - 24,3% para Ciência e Tecnologia; - 12% para Saúde; - 6% para Educação. A perda em relação ao Orçamento de deste ano, já descontada a inflação, nessa rubrica, é de R$ 32 bilhões. E é nela que se concentram os investimentos do governo, que, na prática, serão de ridículos R$ 22 bilhões — pouco mais de 0,2% do PIB. É o mais baixo da história. Convém notar que a previsão orçamentária para a Saúde já cai dos R$ 162,9 bilhões neste ano para R$ 146,4 bilhões no ano que vem. É a menor desde 2014, com uma queda de 10,1%. No caso da Educação, cai de R$ 151,9 bilhões para R$ 147,7 bilhões

Escrevem Cláudio Frischtak, Marco Bonomo e Paulo Ribeiro no artigo recomendado por Samuel:
"O que propomos oferece uma saída equilibrada para o novo governo e parte de duas premissas. Primeiro, é importante manter o teto de gastos para dar previsibilidade às contas públicas nos próximos anos e se comprometer com a âncora fiscal. Segundo, o teto necessita ser ajustado em R$ 78,6 bilhões para acomodar despesas sociais mais prementes: o aumento do novo Bolsa Família para R$ 600 mensais (R$ 52 bilhões); o aumento real do salário mínimo em 1,4% (R$ 6,4 bilhões); a "zeragem" da fila do SUS (R$ 8,5 bilhões); a recomposição do orçamento da Farmácia Popular (R$ 1,2 bilhão), da merenda escolar (R$ 1,5 bilhão), do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (R$ 6 bilhões) e a implementação da Lei Aldir Blanc (R$ 3 bilhões)."

Estamos, como se vê, muito distante da histeria que tomou conta do mercado, mas cabe perguntar: e os R$ 18 bilhões destinados às crianças abaixo de 6 anos atendidas pelo Bolsa Família, uma promessa que Lula fez em campanha, endossada por 60.345.999 de brasileiros? Acho que só uma minoria dos que não votaram no petista se oporia. Na conta acima, não está o Minha Casa Minha Vida (ainda a tal Casa verde Amarela), que ficou com a fabulosa dotação de R$ 34,1 milhões. O governo diz que o valor é maior porque há recursos não orçamentários: ridículos R$ 82,3 milhões.

Para que o Orçamento do ano que vem fosse "exequível", seria preciso transformar a democracia num estelionato. Fosse Bolsonaro o vitorioso, iria furar o teto, como fez nos quatro anos de seu governo, incluindo 2019, antes da pandemia, e este 2022, na boca da urna. E ainda estaríamos a caminho de um regime discricionário, coisa de que ele não desistiu mesmo derrotado.

Os dois superávits primários produzidos por Guedes contam com circunstâncias excepcionais, que não se repetirão. Tanto é assim que o Orçamento-fantasia de 2023 já prevê déficit quando se consideram as receitas e as despesas primárias.

Encerro repetindo Raul Velloso em entrevista à "Veja":
"Há a necessidade de retomada dos investimentos. Sem investimentos não há crescimento do PIB, sem crescimento do PIB, onde se vai colocar esse povo que procura emprego todo dia? Não é só botar os pobres no orçamento, tem de retomar a prática de investir para o país crescer. Se olharmos o investimento em infraestrutura, do final dos anos 1980 para cá ele caiu nove vezes. Como o país pode voltar a funcionar sem a retomada de investimento em infraestrutura? Lula está dizendo que vai cuidar dos pobres e da retomada do crescimento da economia. Isso vai conviver com o teto? Se antes não convivia, agora, com ainda mais razão, não vai conviver. O teto acabou."