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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Já tivemos maluco, golpeado, golpistas e patetas; vil como o "Mito", nunca!

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Colunista do UOL

28/12/2022 16h49

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Caso deixe mesmo o país antes do fim do mandato, com ares de uma fuga, buscando se amasiar politicamente com Donald Trump, outro golpista derrotado, Jair Bolsonaro vai protagonizar um vexame inédito no Brasil, mas não para o Brasil. A bem da verdade, ainda que toda lanhada, a democracia vence — e precisamos todos buscar o seu fortalecimento. A pusilanimidade é toda dele. Na República, já tivemos de tudo: golpe, renúncia, suicídio, impeachment, morte no curso do mandato... Alguém fugir do país, talvez usando o avião presidencial, sem ter ao menos um restinho de decência de renunciar? Ah, isso nunca! Isso será mesmo uma cortesia de Jair.

É provável que vocês já tenham lido por aí que o "Mito" é o 38º presidente do Brasil — Lula se tornaria o 39º. Essa conta está toda atrapalhada. Contabiliza, por exemplo, cinco interinidades: José Linhares (29/10/45 a 31/01/46); de Carlos Luz (8/11/55 a 11/11/55); de Nereu Ramos (11/11/55 a 31/01/56), e de Ranieri Mazzilli por duas vezes: 25/08/61 a 7/09/61 e 2/04/64 a 15/04/64). Mais: líderes que tiveram dois mandatos seguidos contam uma só vez: Getúlio Vargas (de 30 a 45), FHC (1995 a 2002), Lula (2003 a 2010) e Dilma Rousseff (2011 a 2016). O Getúlio de 51 a 54 aparece uma segunda vez, e certamente Lula passará a ser considerado o 39º.

Tudo na ponta do lápis, Lula continuará a ser o que já era: estará entre os 31 brasileiros a terem, efetivamente, a titularidade da Presidência. Delfim Moreira, que sempre aparece como presidente nas listas, era um interino. O petista se iguala a Getúlio na terceira jornada, mas com uma diferença: são três mandatos conquistados de modo democrático. Getúlio chegou ao poder com o golpe de 1930 (chamado "Revolução"), ensaiou um regime democrático, mas desferiu o autogolpe em 37.

NÃO CONCLUÍRAM
Dez presidentes não concluíram a jornada prevista em 11 mandatos. Não é pouca coisa num universo de 32: Marechal Deodoro renunciou em 1891; Afonso Pena morreu de pneumonia em 1909; Washington Luiz foi deposto pela Revolução de 30; Getúlio teve de renunciar em 1945 e se suicidou em 1954; Café Filho se afastou por motivo de doença e acabou sofrendo impeachment em 1955; Jânio Quadros renunciou em 1961; João Goulart foi deposto por um golpe em 1964; Costa e Silva deixou a Presidência em razão de um derrame cerebral em 1969; Fernando Collor foi afastado em razão de um processo de impeachment em 1992, renunciou para tentar evitar o julgamento pelo Senado, que, no entanto, prosseguiu, e Dilma Rousseff, em 2016, também foi alvo de impedimento.

Perceberam? Nunca antes na história deste país um presidente da República fugiu no Brasil no exercício do mandato, como promete fazer Bolsonaro. Nas 11 vezes em que os 10 presidentes não concluíram um mandato (duas no caso de Getúlio), só Jânio exercitou um ato de vontade, além de um erro de cálculo: há a especulação fundada de que pretendia um autogolpe. Todos os outros foram colhidos por circunstâncias que não eram de sua escolha. "E o suicídio de Getúlio?" A história é conhecida: aquele que havia governado como ditador optou pelo gesto extremo para não ser deposto e preso por golpistas na volta à Presidência por meio de eleições.

Assim, a coisa mais próxima da fuga de Bolsonaro é mesmo a cafajestagem de Jânio Quadros. Mas, ainda assim, convenham, nada se compara a um presidente da República dar no pé para não transmitir a faixa a seu sucessor. É claro que estamos falando de um simbolismo, de um rito institucional. Mas a fuga, deixando atrás de si um rastro de golpismo e celerados dispostos a partir para ações de caráter terrorista para impedir a posse do eleito, dá a dimensão moral do "capitão".

JÁ TIVEMOS DE TUDO
E olhem que a história da República é acidentada. Rodrigues Alves, que havia presidido o país entre 1902 e 1906, foi eleito para um segundo mandato em 1918, mas morreu vitimado pela gripe espanhola antes de tomar posse. Assumiu o vice, Delfim Moreira, que fez uma interinidade longa: de 15 de novembro de 1918 a 28 de julho de 1919. Na prática, o país foi governado por Afrânio de Melo Franco. Moreira dava sinais de demência, provavelmente em razão de uma sífilis terciária. A morte impediu também a posse de Tancredo Neves. Houve presidente eleito que não tomou posse, como Júlio Prestes, atropelado pelo golpe de 1930.

O país já foi governado duas vezes por juntas militares: de 24/10/30 a 3/11/30 e de 31/08/69 a 30/10/69. Já houve interino que tentou participar de um golpe de Estado e que foi impichado, como Carlos Luz, que era presidente da Câmara e participou da conspiração para impedir a posse de Juscelino Kubitschek. O cara ficou três dias na Presidência: de 8/11/55 a 11/11/55. Sucedeu-o 1º vice-presidente do Senado, Nereu Ramos: 11/11/55 a 31/01/56. Juscelino só assumiu, no Brasil meio doidão, porque o Marechal Lott deu o que ficou conhecido como "golpe da legalidade" — que era um contragolpe, mas de natureza militar...

A milicada, aliás, chegou a impor um regime parlamentarista, condição para aceitar João Goulart à esteira da renúncia de Jânio — situação que Jango reverteu depois — e o desfecho foi o golpe, que garantiu uma das duas interinidades de Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara. A doença afastou do poder o ditador Costa e Silva, mas Pedro Aleixo, o vice civil, não tomou posse porque uma junta militar — apelidada por Ulysses Guimarães de "Os Três Patetas" — tomou o poder até a posse de Emílio Garrastazu Médici. Nome dos patetas: almirante Augusto Rademaker, ministro da Marinha; general Aurélio de Lira Tavares, ministro do Exército, e brigadeiro Márcio de Sousa Melo, ministro da Aeronáutica.

ASSIM...
Assim, como se vê, nosso leque de excepcionalidades é amplo: golpeados, golpistas, patetas, interinos, malucos e eleitos que não governaram ou porque morreram ou porque depostos antes da posse. Mas é, definitivamente, a primeira vez que um presidente, no exercício do cargo, decide se mandar do país sem renunciar, assistindo, no exterior, ao fim do próprio mandato.

Isso expõe a degradação a que Bolsonaro conduziu a República e se torna um emblema de sua escandalosa irresponsabilidade. Nunca houve ninguém tão vil, tão covarde, tão desprezível. Consta que nem Michelle, sua mulher, vai acompanhá-lo. Não obstante, fanáticos continuarão por aqui atentos ao apito do cachorro.