O 'Estado Paralelo das Emendas' e a resposta absurda do Congresso ao STF
Pode parecer impressionante — e obviamente é — que representantes da Câmara e do Senado tenham dito ao Supremo, vejam que singelo!, que as respectivas Casas não têm como informar a autoria das chamadas "Emendas de Comissão". O episódio ocorreu no âmbito de uma reunião para dar cumprimento a uma determinação do ministro Flávio Dino — que diz respeito, note-se, a matéria já julgada pela Corte —, segundo quem o Executivo só pode repassar recursos para emendas ou para restos a pagar que tenham autoria conhecida. Não sei se lembram, mas o tribunal considerou inconstitucional o dito Orçamento Secreto. Ah, mas o "Estado Paralelo das Emendas" não quer nem saber!
Os que falaram em nome do Congresso afirmaram esta graça à Corte:
"Em relação à RP8, as informações estão disponíveis e atendem o procedimento do regimento, mas a figura do patrocinador não existe no Congresso, de modo que o Congresso não tem como colaborar".
A rubrica "RP8" designa "emendas de comissão". As ditas-cujas eram quase um troco, ainda que caro, de aproximadamente R$ 1 bilhão em 2022. Saltaram para R$ 7 bilhões em 2023 e se tornaram R$ 15 bilhões no Orçamento deste ano. É um esculacho.
As emendas individuais somam R$ 25 bilhões, e as de bancada, R$ 11,3 bilhões. Essas duas modalidades têm execução obrigatória. Somadas aos R$ 15 bilhões das de Comissão, estão previstos para o Congresso em 2024 estupendos R$ 51,3 bilhões do Orçamento. As de Comissão, contra decisão do próprio Supremo e contra a Constituição, pelo visto, seguem sendo uma modalidade de "Orçamento Secreto". No nome da burocracia, deixaram de se chamar "RP9" e passaram a se chamar "RP8".
Noto: para cumprir as regras do Arcabouço Fiscal, o governo teve de congelar gastos de R$ 15 bilhões. Apenas R$ 1,1 tem origem nas emendas.
Informa a Folha:
O secretário de Controle Externo do TCU (Tribunal de Contas da União), Marcelo Eira, defendeu que sejam criadas planilhas para centralizar informações sobre as emendas de comissão.
"As informações existentes estão desencontradas, pulverizadas, o que inviabiliza a transparência", disse Marcelo, segundo a ata divulgada pelo Supremo.
A AGU (Advocacia-Geral da União) afirmou que o "Executivo não tem acesso" aos nomes dos parlamentares que indicaram as emendas de comissão. Ela ainda pediu pressa para se achar uma solução para o impasse.
"O cumprimento das obrigações estabelecidas na decisão deve ser feito com a máxima celeridade para não comprometer projetos em andamento."
DESATINO
O modelo que está aí, de contínua e progressiva apropriação do Orçamento pelo Legislativo, é ingovernável porque desgovernado.
Ignorados contingenciamentos e bloqueios, restavam ao Poder Executivo, no Orçamento deste ano, para custeio e investimentos — depois de excluídos gastos obrigatórios, pagamento de juros e despesas financeiras —, a merreca R$ 222 bilhões — de um Orçamento de R$ 5,5 trilhões
Pois o Congresso reservou para si espantosos R$ 53 bilhões, depois reduzidos a R$ 51,3 bilhões — 23,1% do que sobra. Nada há no mundo nem mesmo parecido. Os EUA estão entre as democracias que mais poder concedem às casas congressuais nessa área: meros 2,4% do que sobra efetivamente ao Executivo. No semipresidencialismo português, só 0,5%; no regime misto francês, nada além de 0,1%; na Coreia do Sul, 0,3%.
Os bacanas, por aqui, definiram R$ 25 bilhões para Emendas Individuais (11,26% do disponível) e R$ 11,3 bilhões para as Emendas de Bancada (5,1%). São de execução obrigatória, o que, por si, já é uma piada. Não contentes, avançaram em mais R$ 15 bilhões (6,7%) na forma das tais Emendas de Comissão — estas cuja autoria, segundo a Câmara e o Senado, não pode ser identificada.
INGOVERNÁVEL
O assalto ao Executivo praticado pelo Legislativo começou em 2015, quando o Congresso impôs à gestão Dilma a execução obrigatória das Emendas Individuais. Em 2019, sob Bolsonaro, foi a vez das Emendas de Bancada. Em 2023, começou o agigantamento das Emendas de Comissão.
Cada um desses governos tinha as suas fragilidades. Dilma vivia uma relação tensa com o Congresso e foi deposta no ano seguinte. Bolsonaro vendeu a governança ao Centrão para não cair — era o preço a pagar para dar continuidade a suas diatribes golpistas. Lula elegeu-se presidente com um Parlamento majoritariamente conservador, com um pedaço escancaradamente reacionário.
Se as respectivas bancadas governistas correspondessem aos partidos com assento nos Ministérios, a base contaria com pelo menos 370 deputados e 59 senadores. E Lula governaria com mais tranquilidade. Ocorre que, em determinadas matérias, teses caras ao Planalto não juntam mais de 130 numa Casa e uns 30 e pouquinhos na outra.
Ora, depois da imposição das emendas e dada a fatia que está nas mãos do Congresso, ser governista para quê? Algumas das vozes mais estridentes da oposição pertencem a legenda que ocupam pastas com orçamento bastante robusto. O poder de que dispunha um presidente da República para formar a sua base começou a ser minado, como se vê, em 2015, quando teve início a folia das emendas impositivas.
MAS ISSO NÃO É BOM?
Algum incauto poderá pensar: "Mas não é positivo haver um Congresso independente do Executivo?" Depende. Independente para exercer as atribuições que lhe são próprias ou para usurpar as competências de um outro Poder, a exemplo do que se vê hoje em dia?
O "Estado Paralelo das Emendas" não é um sinal de autonomia de um dos Poderes da República. No que respeita ao Orçamento, assiste-se a uma pulverização irresponsável, sem nenhum critério, de recursos, o que impede que sejam direcionados para políticas públicas consistentes. É uma das fontes da frenética indústria de obras paradas Brasil afora, ainda que a expressão pareça encerrar um paradoxo.
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Quero receberComo os recursos pingarão na paróquia dos parlamentares — quando não são sorvidos por esquemas fraudulentos —, pouco importando seu compromisso com a estruturação de uma política pública, ele não precisa se comprometer com escolhas programáticas e com a eficácia dos gastos. Mesmo que um correligionário seu ocupe alguma pasta ministerial, ele pode sabotar o governo à vontade porque o que é seu já está garantido.
É PRECISO PÔR UM FIM À FARRA
É preciso pôr um fim à farra. O STF declarou inconstitucional o Orçamento Secreto. Como se nota, alguns bilhões estão indo pelo ralo sem que se conheça quem destinou o recurso. E representantes da Câmara e do Senado não se vexam de dizer: "Não temos como saber quem são os patrocinadores do gastos". Fere a Constituição, como resta evidente.
Mas é preciso, entendo, que se pense além. Como é possível que os destinadores de quase um quarto do que efetivamente sobra ao governo para evitar a paralisia da máquina e para investir não respondam pela destinação de recursos?
Entendo que já há, de saída, uma inconstitucionalidade óbvia: se cabe ao Legislativo aprovar o Orçamento — e, com efeito, ele poderia se articular para, sei lá, cobrar mais dinheiro para isso e menos para aquilo —, é evidente que esse Poder se comporta como um usurpador quando decide em que se vão consumir bilhões de reais. Não é tarefa sua.
Mas há mais: inexiste um mecanismo posterior para cobrar que esse gasto seja eficaz. Como se percebe, os valentes escondem até a autoria das emendas. E que se note: a dificuldade agora é de Lula, mas será de outro no futuro.
CONCLUINDO
Inventou-se no Brasil um regime que não existe em nenhum lugar do mundo. Fala-se em semiparlamentarismo ou semipresidencialismo, mas também isso é inexato. Até porque, é bom que saibam: mesmo nos regimes parlamentaristas, as esferas de competência do Executivo propriamente não se confundem com as do Legislativo.
O "Estado Paralelo das Emendas" é uma aberração e prejudica o país e a governança de dois modos: 1) porque pulveriza recursos de maneira ineficaz, prejudicando a formulação de políticas públicas; 2) porque transforma o Parlamento num balcão.
Já é suficientemente pernicioso e antirrepublicano que as ditas "bancadas temáticas" tratem seus próprios interesses — ou os daqueles que movem a sua mão — como se fossem valores universais. Obviamente não são.
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