Reinaldo Azevedo

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Opinião

Musk, 'primeira-dama de Trump', ironiza Janja e ameaça interferir no Brasil

Está tudo errado no entrevero entre a primeira-dama do Brasil, Janja da Silva, e a futura "primeira-dama dos EUA", Elon Musk. Nesse caso em particular, a daqui deu a primeira nota fora. Que fique claro de saída: Janja pode, se Lula decidir, ser titular de um ministério ou de uma secretaria. Não se aplica a Súmula 13 do STF — a que proíbe nepotismo — para cargos de natureza política. O petista certamente sabe disso e, suponho, deve achar que não convém indicar a sua mulher. Se é assim, cumpre não repetir episódios em que uma figura tão próxima do chefe de Estado transita como uma eminência sem autoridade formal. Dá azo à fofoca e à intriga política.

Sabem o que aconteceu e rememoro rapidamente. No sábado, durante um painel do G20 Social, Janja citou dificuldades adicionais causadas por "fake news" na assistência aos desabrigados das cheias no Rio Grande do Sul. Empregou, note-se, um pronome incômodo para quem não tem cargo: havia em sua fala um excesso de "nós" quando se referia a ações oficiais. Ela é casada com Lula, mas não é governo. Insisto: se ele assim decidir e se ela aceitar, será. E aí poderá falar "nós" à vontade ao se referir à administração federal.

Enquanto falava, ouviu-se alto a buzina de um navio. Ela resolveu fazer uma graça: "Deve ser o Elon Musk". E emendou: "Eu não tenho medo de você. Inclusive, fuck you, Elon Musk". Os presentes riram e aplaudiram a lacração. O problema é que o gracejo agressivo era absolutamente irrelevante para os que estavam ali, mas tem consequências fora dali. Não tardou para que a futura primeira-dama de Trump respondesse: "Eles vão perder a próxima eleição". A mensagem veio com dois emoticons de gargalhada.

FALA DESCABIDA COM VOCABULÁRIO IMPRÓPRIO

Ocupasse ela um cargo político no governo, o vocabulário seria obviamente incompatível com a dignidade da função. É inaceitável que o debate público seja feito desse modo. Se há — e há, às pencas — quem exagere no palavrão para se referir a adversários, os que prezam pela disciplina no embate devem evitar tal escolha. Mais do que isso: é preciso lastimar o apelo ao baixo calão, à agressividade que rende "likes" e pouca luz, à elevação gratuita da temperatura política, que a ninguém aproveita, a não ser a demagogos e populistas.

"Mas você mesmo diz que ela não é titular de cargo político; é mulher do presidente". Bem, então é preciso redobrar a vigilância — em assuntos como esse e em quaisquer outros — para não restar a impressão de que embargos e desembargos auriculares, que se exercem na intimidade da casa, são mais importantes do que a articulação política propriamente. Não adianta: verdade ou mentira, tudo o que Janja diz e faz acaba sendo interpretado como decisões que contam com a anuência de Lula.

Ainda que ela seja filiada ao PT e atue como militante do partido — não sei se é assim mesmo —, essa condição não se sobreporia, aos olhos do público, ao fato de é que é mulher do presidente. Se ela, não tendo cargo, não pode responder por soluções, é inaceitável que crie problemas.

PRECONCEITO E MISOGINIA
Há, sim, em setores da imprensa uma mais do que pronunciada antipatia por Janja. Em parte, parece-me, deixam-se contaminar pela misoginia secretada e excretada pelo bolsonarismo. Essa conversa, por exemplo, de chamar os shows ligados ao G20 -- Aliança Global Festival -- de "Janjapalooza" é só reacionarismo burro e rancor. Verte-se adicionalmente fel contra o fato de que empresas estatais e mistas estiveram entre os patrocinadores. Mas também constam da lista a Prefeitura do Rio e o BID, por exemplo. "Janjapalooza" por quê? Ela apenas integra o grupo que organizou o evento. Trata-se, em suma, de uma mistura de desinformação com maledicência.

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E não vou dizer a Janja algo como: "Já não gostam muito de você; tente se controlar". Jamais o faria porque não se deve dar a adversários ou inimigos a prerrogativa de pautar nossas ações ou respostas. Mas direi, sim, de forma convicta: "Cada erro seu será amplificado ao máximo e será usado contra o governo do presidente Lula. Então é preciso errar menos."

RESPOSTA DE MUSK
É claro que os críticos de nariz marrom aqui do Brasil atacaram Janja -- com alguma frequência, nem de motivos precisam para isso -- e ignoraram a resposta de Musk. Ao fazê-lo, deram um jeito de esquecer quem ele é. Ou melhor: evocaram-se os seus superpoderes apenas para criticar Janja.

A reação da "futura primeira-dama dos EUA" à fala irresponsável da primeira-dama do Brasil é um mau presságio. O cara que vai chefiar o tal "Department of Government Efficiency", ou "Doge" — mesmo nome da criptomoeda de que é garoto-propaganda no mundo. Ninguém sabe como vai funcionar o troço. Mas poderoso será.

Eis uma razão a mais — não por temor, mas por prudência — para que Janja deixe para os profissionais da diplomacia e para aquele que foi eleito para tanto a tarefa de articular as relações Brasil-EUA. Musk, tudo indica, será uma peça central do governo americano. O arranjo institucional da estrovenga não está claro. Há cheiro de que vem alguma aberração por aí: uma espécie de ente privado com poder para resenhar a própria modelagem do Estado.

Ora, se o futuro "gerentão" do governo americano responde a Janja com um "Eles vão perder a próxima eleição", tem-se aí, me parece, a ameaça explícita de que vai usar a sua posição para interferir nos assuntos internos do Brasil. E Musk tem poder e disposição para fazê-lo porque, como se sabe, já fez. A X pintou e bordou nas eleições americanas, com práticas que a legislação brasileira considera crimes.

CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO

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A primeira-dama do Brasil não pediu autorização para Lula para falar o que falou. Ao se manifestar no tal festival na noite de sábado, o presidente brasileiro, referindo-se ao combate à fome, afirmou, numa evidente reprovação à diatribe de Janja:

"Eu queria dizer para vocês que essa é uma campanha em que a gente não tem que ofender ninguém, não temos que xingar ninguém. Precisamos apenas indignar a sociedade".

Acho que Musk, a "futura primeira-dama dos EUA", também não combinou a resposta com Trump. Mas este conhece, dados os pares anunciados até agora, o governo de que fará parte. Tem tudo para ser um dos mais reacionários da história do país em qualquer tempo, sempre relevando os valores de cada época. E, sem tomar ciência do embate, é claro que o líder republicano endossará a fala.

A gente sabe do que Musk é capaz porque o vimos em ação no Brasil — teve de se vergar ao STF — e nos EUA, onde não se verga a ninguém. O empresário atuou de forma determinada e fanática para desestabilizar a Justiça no Brasil. Não há nenhuma razão para acreditar — e insisto que prestem atenção à anunciada equipe de lunáticos — que vá se comportar de modo diferente em relação ao governo Lula.

Posso lhes assegurar que não bastará dizer "Fuck you, Elon Musk".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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