Reinaldo Azevedo

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Opinião

Oscar: Salles, Fernanda e a grande e horrível beleza de 'Ainda Estou Aqui'

"Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, é um filme raro. Conta a história de uma mulher e de uma família colhidas pela tragédia que se abateu sobre um país. Um roteiro rigoroso no encadeamento dos fatos se materializa numa direção econômica, sem maneirismos metafóricos, e se esmera na difícil tarefa de ser simples, "compreensível para as massas", mas não no sentido que os críticos de Maiakóvski exigiam de seus poemas. Cobravam ao militante que seus textos fossem mobilizadores e servissem a um propósito. Ainda que a exigência fosse compreensível no embate ideológico, era descabida numa obra de arte. Daí não se conclua, como li em arengas de certo conservadorismo acanhado, que se trata de uma obra "não política". Pelo contrário. "Ainda Estou Aqui" é profundamente político e tem lado. E, claro!, precisamos falar de Fernanda Torres.

O golpe que matou o deputado Rubens Paiva também tinha lado e enfeixava um conjunto de valores e de interesses no Brasil e na América Latina. A ditadura esmagava seus adversários políticos, de qualquer matiz e matriz, num embate estupidamente assimétrico, sob o pretexto de defender "a autêntica ordem democrática", como se escreve no preâmbulo do AI-5. Os fardados, afinal, atuavam em nome de quem? Certamente não era de uma "classe social" chamada "militares" porque isso não existe.

Obviamente há uma história também econômica, obviamente de classes, que explica aquele passado. Tudo isso se materializa no filme não como um panfleto que busca uma moralidade contestadora ou revolucionária, mas na sua "dimensão estética", para lembrar um texto de Marcuse. Manifesta-se na vivência das personagens; na gramática das coisas — que se conectam e formam o ambiente e a metafísica influente da época —; na sintaxe dos olhares; na rotina das pequenas alegrias familiares — essa nossa vida besta — e nas dores abismais. Tal dimensão transcende — e, por isso, não a nega — a base material da sociedade, em que os embates se dão mesmo é entre as forças produtivas, que disputam recursos e bens finitos, em luta permanente. A história desse filme também pode ser contada por outros discursos.

Que se note: não estou aqui a tratar com menoscabo ou desdém o código da política. Não no país que manteve Lula 580 dias na cadeia, condenado sem provas por um juiz incompetente e suspeito. Não num Brasil em que um fanfarrão truculento passou quatro anos articulando um golpe de Estado, com os desdobramentos conhecidos. Não no momento em que assistimos à recondução de Donald Trump à Presidência dos EUA. Uma de suas ordens executivas, por exemplo, autoriza a caçar mulheres e crianças imigrantes em escolas e igrejas. Uma outra libertou líderes fascistas que comandaram a invasão do Capitólio. Nunca foi tão importante fazer política, falar de política e articular a política para intervir nas esferas do poder.

Não tenho especial simpatia pelo discurso catastrofista porque, em certa medida, em qualquer situação, parece-me sempre mais fácil, e até intelectualmente mais seguro, ser pessimista. Tudo dando errado, resta o "eu disse..." Se a coisa se sair pelo melhor, de acordo com o melhor mundo possível, poucos se lembrarão de antevisões dantescas. Assim, mesmo refratário ao pessimismo, tenho de admitir: vivemos dias perigosos. Como é que a gente faz para ser Eunice Paiva na vida? Não desistir, não se deixar consumir pela dor, agarrar-se à vida — que foi roubada do seu marido — com paixão e método e fazer história. É preciso regar nosso jardim

Já assisti a alguns dos trabalhos que concorrem com "Ainda Estou Aqui" nas categorias "Melhor Filme" e "Melhor Filme em Língua Estrangeira". Não se fez uma concessão ao filme de Salles por condescendência com aquele povo longínquo e ignoto. Não! Trata-se de cinema no que este pode ter de melhor em rigor estético e em apuro técnico. Receber a distinção seria um alumbramento, mas nunca uma desproporção

FERNANDA TORRES
Fernanda Torres atingiu o estado da arte da representação. Quando ela está em cena, Salles executa um diálogo de câmeras notável. Tanto assistimos àquilo que Eunice vê -- também é uma narradora -- como vemos a personagem sendo vista por um olhar externo. Há uma habilidosa intercalação de imagens na primeira e na terceira pessoas. Trata-se de um exercício difícil, que pode se perder em maneirismos. Ocorre que deu formidavelmente certo. Ali estava uma atriz no domínio pleno do seu ofício.

Observo acima que o filme é profundamente político sem ser panfletário — lembrando, não obstante, que, às vezes, no ambiente adequado, é preciso, sim, apelar à força de um panfleto, de um "J'accuse". Também a atuação de Fernanda, para empregar uma expressão de Mussil, é "magra e severa". Ela expressa na face e no corpo a resiliência austera de Eunice: contida, determinada e econômica.

E que se note adicionalmente: que ator raro é, de fato, Selton Mello! Lembrem-se: a obra nasce do olhar do menino e das memórias do adulto Marcelo Paiva, o filho de Rubens. Em mais uma combinação perfeita entre diretor e ator, a interpretação de Selton vira uma espécie de plano de fundo, mais lento e estável, em contraste com a agitação do primeiro plano, na boca da cena. Olhares, risos, afetos, a presença terna e segura do pai... Até o desaparecimento. E aí Salles constrói outra personagem fundamental do filme: a ausência.

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CONCLUO
Sabemos como eram aqueles dias. Fernanda traduz apreensão, tensão, medo, alívio às vezes -- tudo aquilo que, enfim, se instaura na tela ou com o seu olhar ou com a câmara que olha pra ela. Não se ouvia na sala lotada de cinema, no dia em que vi o filme, o barulho um tantinho irritante da pipoca ou das balinhas. Nada. Nem aquela tosse que de vez em quando nos devolve a nós mesmos. Ninguém ousava trocar impressões com quem estava ao lado. E, ao fim, quando o silêncio se rompeu, aplausos a Eunice, a Fernanda, a Salles, a Selton, à grande e horrível beleza de "Ainda Estou Aqui".

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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