Reinaldo Azevedo

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Opinião

A defesa de Bolsonaro deveria se ater à lei, mas insufla arruaça ideológica

As besteiras ditas e escritas sobre a atuação do ministro Alexandre de Moraes no depoimento de Mauro Cid e sobre a denúncia oferecida por Paulo Gonet, procurador-geral a República, multiplicam-se nas redes, entre a má-fé e a ignorância mais rombuda. Todos sabem, já escrevi dezenas de vezes e falei outras tantas no rádio, na Internet e na TV: não sou um entusiasta de delação premiada e penso que muita coisa deveria ser mudada na Lei 12.850, mas é a que temos agora. E olhem que ela já foi pior, antes das mudanças feitas em 2019 pela Lei 13.964 — contra a qual os politiqueiros da Lava Jato lutaram bravamente. Moraes, como relator do caso, não celebrou o acordo de delação: ele apenas tomou um depoimento.

Para quem não entendeu — e há aqueles que fazem questão de investir na confusão: a PF havia colhido uma penca de evidências que contrastavam com as informações que o tenente-coronel havia fornecido em sua colaboração, o que evidencia, note-se, que a investigação não se resumia à sua delação. Aliás é o que exige a Lei 12.850. A colaboração é meio de obtenção de prova (Artigo 3º A).

Quem celebra um acordo de colaboração está sujeito a deveres, conforme o Artigo 4º, que disciplina a delação:
"I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa"


O parágrafo 6º dispõe:
"§ 6º O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor."

Lamento que a defesa de Jair Bolsonaro abandone o bom exercício do direito para jogar para a galera das redes sociais e para instrumentalizar certo jornalismo, ou que nome tenha, bronco ou oportunista: Moraes não participou das negociações para a delação. Ao conduzir o depoimento, na presença do defensor de Cid e de Paulo Gonet, procurador-geral da República, apenas cumpria a sua função. O ministro lembrou a Cid o conteúdo do Parágrafo 14:
"§ 14. Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade."

Insista-se: feito o acordo, inexiste o direito ao silêncio e há a obrigação de dizer a verdade. E se não for assim? A lei também é clara:
"§ 17. O acordo homologado poderá ser rescindido em caso de omissão dolosa sobre os fatos objeto da colaboração."

"§ 18. O acordo de colaboração premiada pressupõe que o colaborador cesse o envolvimento em conduta ilícita relacionada ao objeto da colaboração, sob pena de rescisão."

Em entrevista à GloboNews, em tom indignado, Celso Vilardi, um dos advogados de Jair Bolsonaro, afirmou e indagou, como quem denunciasse um escândalo:
"O ministro marcou uma audiência para salvar a delação. Pode isso? O juiz da causa pode dizer para o colaborador que, se ele não falar a verdade, ele vai ser preso e perde a imunidade para a sua filha, para sua mulher e para o seu pai? O juiz pode fazer o papel de instrução no processo acusatório? Precisamos discutir isso".

A "instrução do processo acusatório" é mera interpretação do doutor. Quanto ao resto, a resposta é escancaradamente "SIM". Moraes estava informando a Cid que a apuração independente da PF colidia com os dados da sua colaboração.

O doutor se esqueceu de lembrar a seus interlocutores que havia um pedido de prisão apresentado pela PF, que contava com manifestação favorável da PGR. O juiz cumpriu o seu dever ao observar ao depoente que ela estava sujeito ao §17: "O acordo homologado poderá ser rescindido em caso de omissão dolosa sobre os fatos objeto da colaboração".

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"Ah, mas Alexandre precisava ameaçar a família de Cid?" Não ameaçou. Apenas rememorou os termos do acordo que havia sido feito pelo colaborador e que podiam se rescindidos:
- perdão judicial ou pena não superior a dois anos;
- que os benefícios do acordo sejam estendidos ao pai, mulher e filha maior;
- que bens e valores eventualmente apreendidos sejam restituídos:

- que a PF garanta a segurança do colaborador e familiares.

Se a delação de Cid compreendesse, entre os benefícios, "tomar todo um dia um Chicabon", Moraes teria observado: "E vai ficar sem Chicabon".

Transcrevo o que disse Moraes numa audiência que poderia ter resultado na prisão de Cid e na rescisão de sua colaboração:
"O colaborador tem não só benefícios; tem também obrigações, e a maior delas, das obrigações, é falar a verdade, é não se omitir, não se contradizer. Não há na colaboração premiada essa ideia de que 'só respondo o que me perguntam'. Não! O colaborador colabora com dados, com dados efetivos -- até porque há o requisito essencial para que os benefícios sejam concedidos: a efetividade da colaboração. Se não houver efetividade da colaboração, se a colaboração em nada auxiliou, não há por que, dentro dessa ideia de justiça colaborativa, de justiça 'premial', se darem os benefícios".

Que coisa, né? Olhem o ministro evocando os Incisos I, II e III e os Parágrafos 14 e 17 do Artigo 4º da Lei 12.850!

Continuemos com Moraes:
"Essa audiência foi convocada como mais uma tentativa de permitir ao colaborador que preste as informações verdadeiras. Já há o pedido da Polícia Federal, já há parecer favorável da Procuradoria Geral da República pela imediata decretação da prisão, do retorno à prisão, do colaborador. Então, aqui, é importante...E exatamente por isso, a fim de possibilitar uma reflexão maior do colaborador com seus advogados para que esclareça omissões, contradições na sua colaboração, sob pena não só da decretação de prisão, como também da cessação e consequente rescisão da colaboração. E eventual rescisão englobará, inclusive, a continuidade das investigações e responsabilização do pai do investigado, de sua esposa e de sua filha maior".

Meu Deus! Mais uma vez o juiz cometeu o crime evocar o conteúdo dos Parágrafos 14, 17 e 18 do Artigo 4º da Lei. As alusões à família se devem ao fato de que foi um dos itens do acordo celebrado por Cid.

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Mais um pouco? Pois não:
"A colaboração premiada não pode ser seletiva e direcionada. Ela não pode ser utilizada para proteger alguns e prejudicar outros. O colaborador dá os fatos. Quem analisa quem será processado ou não é o Ministério Público, é o procurador-geral da República, e quem analisa, após a denúncia, eventual denúncia da Procuradoria-Geral da República, se haverá culpabilidade ou não, é o Supremo Tribunal Federal. Não é o colaborador que, desde o início, analisa: 'Ah, esse não fez nada". Eu quero fatos: é por isso que eu marquei essa audiência. Eu diria que é a última chance de o colaborador dizer a verdade sobre tudo. Eu vou passar a palavra a ele. Porque, depois... Não vão dizer depois que eu não avisei: tenho aqui um relatório detalhado não só da investigação, como do novo relatório que a Polícia Federal está apresentando agora, encerrando a investigação sobre a tentativa de golpe, com 700 páginas detalhadas. Eventuais novas contradições não serão admitidas".

Alexandre estava ali a cumprir o Parágrafo 7º, sempre do Artigo 4º da Lei 12.850:
"§ 7º Realizado o acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação:
I - regularidade e legalidade;
II - adequação dos benefícios pactuados àqueles [previstos em lei)
III - adequação dos resultados da colaboração aos resultados mínimos exigidos nos incisos I, II, III, IV e V do caput deste artigo;

IV - voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares."

E quantas vezes o colaborador pode ser ouvido? Tantas quantas o juízo achar necessário.

TÁTICA
A defesa de Bolsonaro sabe que está numa tarefa inglória. Contra o ex-presidente, chega a haver um excesso de provas porque seu golpismo é insaciável e irrefreável. Na terça, ele foi ao Senado falar com aliados e acusou uma vez mais o TSE de ter fraudado a eleição de 2022. Nesta quinta, em evento do PL, disse "cagar" para a prisão e afirmou que, em 2022, o golpeado foi ele -- vale dizer: continua a não reconhecer o resultado das urnas e a afirmar que foi roubado pelo tribunal.

Boa parte daqueles que o cercam inflamam seus milicianos digitais com ataques ao Supremo e a PGR, alegando que tais estes não têm independência para atuar no caso, o que busca colocá-lo, desde logo, como um homem acima da lei. É o mesmo Bolsonaro de 7 de setembro de 2021, quando anunciou que não mais cumpriria decisões judiciais. É o mesmo Bolsonaro de 5 de julho de 2022, quando encomendou aos subordinados ações para impedir a realização de eleições. É o mesmo Bolsonaro de 9 de dezembro daquele ano, quando rompeu o silêncio pós-eleitoral, um dia depois de conversar com o general golpista Mario Fernandes — o pai do "Punhal Verde-Amarelo" —, para anunciar, ainda que de modo oblíquo, que o golpe estava a caminho.... Eram tempos, creio, em que Vilardi se colocava como um crítico do golpista.

Não demonizo advogados. Eles não se confundem com seus clientes. Fazem a defesa técnica, a que todos devem ter direito numa democracia. Lamento, no entanto, e profundamente, que, dada a dificuldade óbvia da causa, haja um apelo que nada tem a ver com o universo das leis e com o mundo do direito. Assim como execro juiz que se deixa mover pelo clamor público, repudio a prática que busca criminalizar um magistrado que apenas fez o seu trabalho.

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Também o sempre reto, contido e competente Paulo Gonet está sendo alvo de ignorância, estupidez e obscurantismo porque ou teria ido além ou teria ficado aquém, depende do gosto do crítico, do inquérito da Polícia Federal, como se não pudesse haver diferenças de leitura entre o órgão que investiga e o que oferece a denúncia. Essa gente se esquece de que o Ministério Público, titular da ação penal, é autônomo, inclusive, para, se assim considerar, não oferecer denúncia nenhuma.

CONCLUO
"Ah, mas estamos diante de uma nova Lava Jato, de que você, Reinaldo, é crítico". Eis outra estupidez saliente. A barbárie lava-jatista se deu num tempo em que bastava a delação para desgraçar o delatado. Isso mudou em 2019, quando a Lei 12.850 foi alterada pela Lei 13.964, contra a vontade de delinquentes que usaram uma suposta operação de caça a corruptos para assaltar o Estado e o estado de direito e para fazer política.

Tratava-se, como se provou depois e como intuí bem depressa, de militantes de extrema-direita disfarçados de benfeitores da humanidade. Não há similaridade possível entre a persecução penal aos golpistas e a malfadada operação. Quanto à disposição da defesa de Bolsonaro de pedir a anulação da delação de Mauro Cid, dizer o quê? Que o faça. O pedido é livre. O STF vai decidir. A propósito: ainda que anulada fosse, e não há motivo para isso, as provas produzidas pela Polícia Federal seguiriam intocadas.

É só mais um papo-furado para inflamar os já inflamados. Estamos fora do universo do direito. É arruaça de Internet.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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