PGR e STF seguem o rito legal; Bolsonaro e fanáticos mantêm rotina golpista

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O noticiário desta quinta, no que diz respeito ao processo da tramoia golpista, passa a falsa impressão de que algo de extraordinário e formidável aconteceu. Será? O que se tem é nada menos do que um ritual em que cada um cumpre o seu papel. Alguns seguem o que determinam leis e regimentos; outros caminham segundo a sua natureza, a desacreditar os Poderes e, ainda que pareça incrível, continuam a praticar golpismo, só que por meios mais oblíquos. Explico tudo.
Paulo Gonet, procurador-geral da República, pouco dado a eventos buliçosos, defendeu junto ao Supremo que a Primeira Turma do tribunal decida se Jair Bolsonaro e mais sete denunciados do, digamos, núcleo duro da tramoia golpista — Alexandre Ramagem, Almir Garnier, Anderson Torres, Augusto Heleno, Mauro Cid, Paulo Sérgio Nogueira e Braga Netto — devem ou não se tornar réus. As objeções à denúncia apresentadas pelas respectivas defesas não convenceram aquele que representa o órgão acusador a desistir da denúncia.
Entenda-se: nessa fase do processo, os defensores apresentam preliminares que acreditam, a seu juízo, capazes de descaracterizar a peça acusatória. Escreveu Gonet:
"Superadas as preliminares suscitadas pelos denunciados, basta anotar, quanto ao mérito, que 'a fase processual do recebimento da denúncia é juízo de delibação, jamais de cognição exauriente' e que, na espécie, a denúncia descreve de forma pormenorizada os fatos delituosos e as suas circunstâncias, 'explanando de forma compreensível e individualizada a conduta criminosa em tese adotada por cada um dos denunciados'"
As palavras fazem sentido. O termo "delibação", empregado pelo procurador-geral, vem do verbo "delibar"; vale dizer: apreciar o sabor; experimentar uma quantidade reduzida de um líquido; degustar. Não se trata de "cognição exauriente", de convicção formada depois de exauridas as dúvidas. Para avaliar se uma denúncia deve ser aceita ou não, é o que basta. Os delitos aconteceram. Se os denunciados se tornarem réus, as defesas têm um longo caminho pela frente.
Também o relator, Alexandre de Moraes, cumpriu o seu papel ao solicitar a Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma, que marcasse a data da apreciação da denúncia do primeiro lote de investigados, o que já foi feito. A primeira de três sessões está marcada para o dia 25 deste mês. As respectivas defesas apresentaram uma penca de petições, tentando impedimento de ministros, questionando o foro do julgamento ou alegando acesso precário aos autos na certeza absoluta de que não seriam atendidas. Fazem o seu trabalho, embora eu ache que, dadas as evidências da tramoia golpista, deveriam apostar numa estratégia de redução de danos. Mas é preciso entender que esses profissionais buscam fazer o melhor, desde que aceitem a causa, nos limites estabelecidos, no fim das contas, pelos clientes. Vamos lá: até aqui estamos no território dos ritos e do cumprimento de papéis.
Mas há os que estão fora da ordem. E duvido que as heterodoxias e a perspectiva renitentemente golpista de Bolsonaro e de seus entusiastas possam ser úteis à defesa.
NÃO RECONHECEM A LEGITIMIDADE DO TRIBUNAL
Tão logo os operadores da lei, cada um na sua seara, fizeram o que lhes cabia fazer -- e cumpre notar que não se vai julgar o mérito dos casos (chegar à "cognição exauriente"), mas apenas o recebimento ou não da denúncia (o "juízo de delibação") --, veio a público uma nota espantosa assinada pelo deputado Luciano Zucco (PL-RS), líder da oposição na Câmara. Reproduzo:
"A oposição vem a público manifestar sua profunda preocupação com a celeridade incomum do Supremo Tribunal Federal no julgamento do presidente Jair Bolsonaro.
É um processo que todos já sabem o resultado. E ninguém mais procura esconder a vontade condenatória para eliminar da vida pública a maior liderança política da direita nacional, que derrotaria Lula nas urnas em 2026, conforme as pesquisas de opinião já apontam. Em um país onde processos se arrastam por anos, causa estranheza a velocidade com que a Corte age quando o réu é um adversário político do governo.
Além disso, o julgamento ocorre com a presença de magistrados que possuem notória proximidade com o Partido dos Trabalhadores e com o atual governo. O ministro Flávio Dino, ex-ministro da Justiça de Lula, e Cristiano Zanin, que foi advogado pessoal do presidente antes de sua nomeação ao STF, são exemplos claros de conflito de interesse que deveriam, por princípio ético, levar à sua suspeição no caso. Em qualquer país democrático, essa situação levaria à anulação do processo.
A oposição reafirma seu compromisso com o devido processo legal e a imparcialidade da Justiça. Não aceitaremos que o Judiciário seja instrumentalizado para perseguir adversários políticos e desequilibrar o jogo democrático. Seguiremos vigilantes na defesa do Estado de Direito e da isonomia entre todos os cidadãos perante a lei.
Deputado Federal Zucco (PL-RS)"
É claro que o ataque ao tribunal contou com a anuência de Bolsonaro. O que se tem acima é nada menos do que a afirmação de que a Corte não tem independência para julgar Bolsonaro. Mais: abusa-se do procedimento maroto de antever um resultado que eles próprios têm como certo em razão das evidências da conspiração golpista para, posteriormente, tonitruar a ilegitimidade do julgamento.
Na X, o próprio Bolsonaro resolveu desancar o Supremo, cantando as glórias do sistema judicial americano, observando que, nos EUA, os processos contra Trump "correram na primeira instância, com uma breve consulta à Suprema Corte sobre matéria constitucional". A síntese é troncha, mas o espírito é claro: Bolsonaro quer ser candidato à Presidência do Brasil, mas gostaria de ser processado segundo as leis americanas. Ainda não, senhor. Ainda não!
A proposta de anistia aos golpistas condenados e o ato de protesto do próximo dia 16 são afrontas ao Poder Judiciário, especialmente ao STF, próprias de quem, tendo renunciado à função de governar o Brasil, terceirizando as funções de presidente, para articular um golpe de Estado, segue golpista ainda hoje. Bolsonaro tem seus advogados, como é sabido, mas é evidente que continua a apostar numa saída que não vem das leis, mas das suas milícias digitais. Não vai acontecer.
Na quarta-feira, ao lado de Valdemar da Costa Neto, o ex-presidente concedeu uma entrevista à imprensa. E acusou Alexandre de Moraes e o TSE de interferir no resultado nas eleições de 2022. Transcrevo o que engrolou:
"Eu não podia mostrar, eu, no 7 de setembro, um milhão de pessoas na rua, botar a imagem do Lula defendendo aborto; defendendo roubo de celular para tomar cerveja. Eu não podia botar a imagem do Lula negociando [incompreensível] de urânio com o 'Ramadinejad' em 2009, não podia mostrar nada... Eu não podia mostrar o Lula no Morro do Alemão com o CPX na cabeça... E aí depois me torno inelegível porque me reuni com embaixadores. E o encontro do Lula com traficante, do Rio? Eu acho que é um direito dele, né? Afinal e contar é a seara dele fazer isso aí, né? Mas que não seja proibido o outro lado falar sobre isso. Eu fui acusado de pedófilo por um deputado aqui e entrou na propaganda eleitoral do PT. Acusado de exterminar direitos trabalhistas, certo? Acusado de tudo o que possa imaginar: não gostar de negro, de mulher, LGBT... Tudo! Valia tudo. Inclusive sonegaram para a gente 1,5 milhão de inserções de rádio na reta final. Inclusive foi feita uma campanha, gastou-se dinheiro para que menores de 16, 17 anos tirasse título. Esse pessoal, três quartos, vota na esquerda. E mais de quatro milhões de jovens se inscreveram. Só aí, dá mais de dois milhões de votos para o outro lado".
Eis o puro sumo de Bolsonaro. É com essa cabeça que ele governou o país, destruindo políticas públicas essenciais. O que ele está a dizer acima é que o TSE acabou impondo algum limite às suas mentiras. Vamos ver:
- Lula nunca defendeu mudança na lei do aborto;
- Lula nunca negociou urânio com Ahmadinejad (e não Ramadinejad), ex-presidente do Irã; o Brasil tentou intermediar um acordo para que o país enriquecesse urânio sob supervisão de agência da ONU e para fins não militares;
- o boné do CPX, como se sabe, diz respeito ao Complexo do Alemão; nada tem a ver com o crime organizado;
- Lula nunca se encontrou com traficantes;
- É mentira: não houve a sonegação de 1,5 milhão de inserções;
- Como? Quatro milhões de jovens tiraram título em 2022. Os números apontam que o total de eleitores de 16 e 17 anos em 2022 foi de 1,7 milhão;
- o TSE mandou tirar do ar muitas inserções de adversários de Bolsonaro, inclusive a referente à pedofilia -- coisa de um deputado, não da campanha de Lula.
Bolsonaro sonha com um país e com um mundo sem tribunais, em que tudo se decidisse nas redes, colonizadas por fanáticos de extrema direita. Haver juízes que digam que algo não pode ser feito porque agride a lei ou desrespeita direitos de terceiros desperta os seus demônios, muito especialmente quando esse arcabouço legal protege minorias.
ENCERRO
PGR e STF cumpriram os ritos legais nessa fase do processo. Fizeram o seu papel. Em muitos aspectos, Bolsonaro também não surpreende. Continua a falar a linguagem da mentira escarrada e do golpe. E vai pagar por isso.
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