Reinaldo Azevedo

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Opinião

Tolices: punir por pichar estátua com batom? Golpe é pior do que homicídio?

Se alguém pergunta se faz sentido condenar alguém a 14 anos de cadeia porque pichou uma estátua com batom, dizer o quê? Só resta apelar a máxima para os casos em que o debate está fora de lugar: inexistem respostas certas para perguntas erradas.

Num país notavelmente violento, especialmente contra os que menos têm — os direitos igualmente distribuídos vão se desigualando na prática a depender da renda e da posição social —, é compreensível que se apelem a falsos contrastes para expressar contrariedades, contraposições, perplexidades. Mas há as pessoas que pertencem a entes que têm o dever — se não é exatamente legal, é ao menos ético — de ir além dos paradoxos aparentes para chegar ao "é da coisa", como escreveu Clarice Lispector. E a imprensa está entre esses entes.

"O que é que eles fizeram? Usaram batom?", indagou o governador de São Paulo, o bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), no domingo retrasado, no Rio, na manifestação convocada por Jair Bolsonaro em defesa da anistia para os golpistas (e para si mesmo) e contra o STF e o governo Lula. Há valentes no país que decidiram que seu modo de demonstrar "independência" consiste em fazer oposição sistemática ao Supremo. Sei... Obviamente não têm a mesma preocupação independentista em relação às teses abraçadas por Bolsonaro, Tarcísio e o resto da turma.

Como é? Débora Rodrigues dos Santos estava numa praça qualquer, viu lá uma estátua e lhe deu na veneta: "Quer saber? Vou escrever nessa coisa aí 'perdeu, mané'" Alguém até a indagou a respeito: "Mas o que isso significa?..." Ela não soube responder porque atendeu a um impulso, desses a que qualquer um estaria sujeito, como a reagir a uma mensagem do além. Foi assim que aconteceu? A julgar por certa argumentação tosca que anda por aí, inclusive e especialmente em setores da imprensa, sim. Ocorre que não.

Trata-se de um juízo vergonhoso. Dado o ato individualizado, indago:
- que estátua era aquela?;
- qual o seu significado?;
- em que circunstância se deu a pichação?;
- o que a tal senhora fazia naquela local?:
- que relação a sua conduta, comprovada e inequívoca, tinha com os eventos daquele dia?;
- por que aquelas pessoas estavam lá?:
- qual o sentido daquela frase?

O ataque às respectivas sedes dos Três Poderes foi brutal. A suposição de que se tratou de uma irrupção sem nenhuma organização e sem conexão com a tramoia golpista já foi devidamente desmoralizada pelos fatos. Alguns dos figurões da intentona malsucedida tinham contato direto com os acampados e com suas lideranças. Nesse contexto, o batom na estátua entra como um emblema dos eventos daquele dia. E, não por acaso, era um também emblema do Judiciário que se estava conspurcando. É uma estupidez, uma aberração e uma agressão à democracia e à independência do Poder Judiciário que se resuma o episódio a "batom numa estátua".

"Ah, mas a pobrezinha, mãe de duas crianças, nem sabia direito a importância daquilo tudo e o que estava fazendo..." É mesmo? Vale lembrar. O ministro Roberto Barroso, presidente do Supremo, estava em Nova York no dia 15 de novembro de 2022 quando foi importunado por um bolsonarista, que o filmava num celular. Incomodado, o ministro respondeu: "Perdeu, mané, não amola!" Era o mês em que a conspiração golpista fervia.

O "perdeu, mané" na estátua que simboliza a Justiça e o próprio tribunal tornou-se, dado o contexto, uma espécie de retaliação e de anúncio revanchista. O "mané" ali era o tribunal, era a Justiça, era o estado de direito. A autora da mensagem, embalada por outros golpistas, desafiava a institucionalidade: "Vocês todos perderam; nós ganhamos; tanto é assim que estamos aqui, quebramos tudo, e agora vou deixar uma mensagem para os legalistas que acabamos de derrotar: 'perdeu, Mané!'".

"Ah, mas se trata de uma cabeleireira!" E daí? Isso deveria nos dizer alguma coisa? Ao escolher o alvo Débora sabia o que estava fazendo, não? Afinal, aquela pichação em si, mais do que o ataque a outras obras de arte e a depredação das instalações e dos móveis, indicava que a pretensão era não apenas derrubar o presidente, mas cassar também a autoridade do Supremo — coisa que Bolsonaro procurou desde o primeiro dia de mandato.

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É um vexame que se queira reduzir a agressão às instituições a "escrever com batom numa estátua". Eu me fiz jornalista no período da redemocratização, com uma imprensa comprometida com as liberdades públicas e os direitos fundamentais. Aquela que apoiou o golpe de 1964, conheci por intermédio dos livros. A condescendência com o golpismo, obviamente, nada tem a ver com pluralidade e diversidade. Ele estreita o campo do debate democrático. Se Bolsonaro tivesse sido bem-sucedido no seu intento, não estaríamos, é certo, a debater essas coisas...

Ademais, não é o inconformismo com o tamanho das penas que está na raiz da inaceitável pressão por anistia. O que se pede é que se esqueçam os crimes cometidos pelos golpistas, inclusive os cometidos por Bolsonaro, em nome de uma suposta "conciliação". E, ora vejam, em nome dela, Eduardo Bolsonaro resolveu ficar no "exílio" para pressionar o governo norte-americano a aplicar punições ao Brasil. Um exemplo e tanto de patriotismo.

OUTRAS BURRICES
Mais uma pergunta errada sem resposta certa? Vamos lá: faz sentido que um golpista tenha pena superior à aplicada a um homicida? Resposta óbvia: depende de quais e de quantos crimes cometeu o golpista, ora. Um juiz aplica a lei; não se atém a esse tipo de comparação esdrúxula.

Querem ver como esse tipo de raciocínio induz delinquências intelectuais? Poucos se dão conta, mas existe pena de morte na legislação brasileira, com prescrição constitucional. Está no Inciso LXVII do Artigo 5º, o dos direitos fundamentais:
"XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada"

Há pena de morte no país para os crimes militares em tempos de guerra. O Código Militar está aqui. Vocês encontram lá todas as hipóteses, e não são poucas, de pena capital, entre os Artigos 355 e 408.

Saibam: a covardia pode ensejar a condenação por fuzilamento, que é a pensa adotada. Lê-se lá:
"Art. 364. Provocar o militar, por temor, em presença do inimigo, a debandada de tropa ou guarnição; impedir a reunião de uma ou outra, ou causar alarme com o fim de nelas produzir confusão, desalento ou desordem:
Pena - morte, grau máximo; reclusão, de vinte anos, grau mínimo."

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Aí alguém poderia indagar: mas isso é pior do que um assassinato em série de crianças? O criminoso jamais seria condenado à morte porque inexiste tal pena para civis. Inexiste resposta certa para perguntas erradas.

Não são, absolutamente, coisas comparáveis, ainda que se defenda a pena capital também para civis. Estamos em domínios distintos.

A Constituição consagra a proteção à vida e, por isso, repudia a pena de morte mesmo nos casos mais escabrosos. Existe a exceção para militares em tempos de guerra. Ainda que eu repudie a pena de morte em qualquer caso, observo: um militar que traísse seu país nessa circunstância poderia pôr em risco a vida de milhares, quiçá milhões.

Um homicídio não é um crime menos grave do que golpe de estado. É outra coisa. A legislação protege bens de naturezas distintas, e isso está refletido nas respectivas penas. É preciso tomar cuidado com as bizarrices quando se fazem comparações. Como escreveu Umberto Eco, todos entendemos quando se compara o Aquiles da Ilíada a um leão. Nem é necessário explicar as razões. Mas certamente seria uma burrice se alguém o associasse a um pato porque ambos são bípedes. Ou, acrescento eu, afirmasse que ambos são distintos porque um tem penas, e o outro não.

Não há dúvida de que, no terreno da polêmica, já vivemos melhores dias.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.