Reinaldo Azevedo

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Opinião

Perda de bens em delação antes do trânsito em julgado? A Carta vale ou não?

Há um julgamento em curso no plenário físico do Supremo que parece nos remeter para as calendas e que, efetivamente, joga luzes em trevas do passado, mas também ilumina o presente e o futuro. Diz respeito ao perdimento antecipado de bens que compõe as cláusulas do acordo de delação premiada de executivos da Odebrecht. Edson Fachin, o relator, votou para a execução imediata da medida. Gilmar Mendes, o decano da Corte, num voto alentado, se opôs. A íntegra está aqui.

O que significa, afinal, "perdimento antecipado de bens"? O adjetivo da expressão se traduz assim: antes do trânsito em julgado. Para Fachin, se o procedimento fazia parte do acordo, não se cuida de evocar os fundamentos da presunção de inocência ou do devido processo legal.

Bem, lembro como eram feitas as salsichas na Lava Jato. Em benefício de minha própria memória, observo que, à época, considerei temerário o procedimento da "execução antecipada de penas".

Mendes destaca "a impossibilidade do estabelecimento da obrigação da apresentação de um 'termo de renúncia' de bens imposto pelo MPF para fins de viabilização da execução antecipada das penas." E acrescenta: "As amarras estabelecidas pelo princípio da legalidade também afastam, a meu ver, o fundamento estabelecido na decisão recorrida, no ponto em que pretende fazer prevalecer aquilo que foi acordado em detrimento do que se encontra legislado, com a invocação às bases objetivas do negócio jurídico e à inexistência de termo aditivo."

Afirma ainda o ministro:
"entendo que a cláusula que estabelece a execução imediata das sanções de perda de bens também viola os limites estabelecidos pelos princípios do devido processo legal, da presunção de inocência e da individualização da pena (art. 5º, XLVI, LIV e LVII, da CF/88), bem como as disposições da Lei 12.850/2013, as quais exigem a instauração de um processo, a produção de provas externas e autônomas de corroboração e a condenação definitiva dos colaboradores, com a avaliação da validade, da eficácia e da aplicação dos benefícios pactuados nos acordos em sede de sentença, nos termos da norma prevista pelo art. 4º, §7-A, da Lei 12.850/2014, antes que se possa exigir o efetivo cumprimento das sanções pactuadas."

"Tá com peninha dos caras da Odebrecht?" Não os conheço. Tenho zelo pelo devido processo legal. Ocorre que aqueles eram tempos bárbaros, e tudo o que a Lava Jato dizia virava palavra revelada, inclusive na imprensa.

"E por que não pede agora isso tudo em relação a Bolsonaro e aos golpistas?" Quem disse que não? Não só peço como defendo. Eu realmente não acredito — no que respeita à minha convicção, crença pessoal, "achômetro" — que Mauro Cid tenha fraudado o cartão de vacinas do então presidente e de sua filha sem a anuência do chefe. Mas aplaudi a decisão de Paulo Gonet, procurador-geral da República, que recomendou o arquivamento do inquérito no que respeita ao dito "Mito" porque, segundo disse, não há prova autônoma (citada acima por Mendes), só a delação. Ocorre que essa restrição foi parar na Lei 12.850 só em 2019.

HOMOLOGAÇÃO COM RESTRIÇÃO
De fato, a ministra Cármen Lúcia homologou os 77 acordos de delação da Odebrecht em 2017 -- não entro em minudências agora, mas destaco que me opus então. Mendes não opõe restrição nenhuma à decisão da então presidente da Corte. Escreve:
"No que se refere aos questionamentos sobre a própria voluntariedade do acordo, cumpre registrar que não há qualquer tipo de mácula ou juízo de valor no que se refere à decisão de homologação proferida pela eminente Ministra Cármen Lúcia no início do ano de 2017, na condição de Presidente desta Corte e em substituição ao saudoso Ministro Teori, uma vez que a decisão homologatória foi proferida de forma técnica e absolutamente adequada aos fatos e ao contexto existente naquele momento.
Aliás, entendo ser inclusive salutar a ressalva estabelecida pela eminente Ministra na decisão de homologação, quando estabelece a impossibilidade de imposição forçada do cumprimento antecipado das sanções acordadas entre as partes, por representar a violação a um direito dos colaboradores, de forma semelhante ao que tenho defendido até o presente momento."

Destaque-se, ademais, que, naquela homologação, Cármen escreveu:
"O cumprimento antecipado do acordado, conquanto possa se mostrar mais conveniente ao colaborador, evidentemente não vincula o juiz sentenciante nem obstará o exame judicial no devido tempo".

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Realmente não acredito que o sistema judicial brasileiro permita a celebração de acordos, de qualquer natureza, que violem garantias constitucionais e o devido processo legal. De resto, voltemos à questão das salsichas: sabemos muito bem como foram feitas no período do terror lava-jatista, como lembra Mendes:
"Nessa toada, destaco, dentre os vários elementos indicativos desses graves vícios de ilegalidade, o conluio existente entre membros do Ministério Público e o então juiz Sérgio Moro, o uso excessivo de prisões preventiva como instrumento de barganha para os acordos, a exigência da desistência dos pedidos de liberdade provisória formulados pelas defesas como requisitos para o prosseguimento das negociações, a divulgação de notícias nos meios de comunicação para pressionar os colaboradores a celebrarem os acordos, a eleição dos recorrentes como alvos da operação com base em objetivos políticos e a eleição de critérios aleatórios e arbitrários para a definição das penas privativas de liberdade, de multa e de perdimento de bens."

Tudo isso aconteceu.

ALGUMAS ABERRAÇÕES
Há casos em que o perdimento antecipado de bens se torna especialmente perverso. Mendes cita:
"O recorrente da PET 6455, A.L.C.R, possuía uma única investigação instaurada contra si que foi arquivada com base na extraterritorialidade dos delitos e da ausência de qualquer ato ou delito praticado em território nacional. O colaborador/recorrente da PET 6471 se encontra em situação semelhante, já que não foi processado e nem condenado por nenhum dos fatos delatados. No que se refere ao colaborador da PET 6491, uma das denúncias oferecidas contra ele já foi rejeitada, uma segunda foi recebida, e o terceiro fato se encontra em discussão em sede de recurso em sentido estrito."

NÃO ESTÁ CONTRA DELAÇÃO
O ministro destaca que não está se opondo ao estatuto da delação premiada:
"Para concluir, entendo ser importante reiterar que não se está a adotar um posicionamento contra a colaboração premiada, contra a investigação e a punição efetiva e em prazo razoável de crimes cometidos por organizações criminosas ou contra o ressarcimento de prejuízos causados ao Estado brasileiro.

Em verdade, a aplicação das garantias fundamentais do processo aos acordos de colaboração premiada busca ressignificar este instituto e resgatá-lo de um contexto em que foi utilizado para a prática de um incontável número de arbitrariedades.
Este resgate permitirá, a meu ver, que tais acordos cumpram a sua função de servir para a obtenção de provas, para o esclarecimento de fatos de interesse público e para o julgamento efetivo e em prazo razoável de crimes graves, com a aplicação das penas corporais ou patrimoniais cabíveis e o ressarcimento de prejuízos financeiros, sem se converter, em si mesmo, em um instrumento de injustiça e de uso abusivo e expansivo da força.
Essa é a única forma de se compatibilizar esse instrumento de justiça negocial com as melhores práticas nacionais e internacionais de combate à macrocriminalidade e de observância ao sistema de proteção de direitos.
Registre-se que a proposta aqui defendida não impede a celebração de acordos, não obsta a manifestação do consenso no processo penal, não impossibilita a aderência da defesa às teses acusatórias e nem proíbe o uso das modernas técnicas de investigação, de produção de provas ou do uso de medidas cautelares para o bloqueio de eventuais valores ilicitamente obtidos, assim como também não tergiversa contra violações nucleares a direitos e garantias fundamentais como o princípio da legalidade penal, da presunção de inocência, do caráter acusatório do processo e do devido processo legal.
Não se pode simplesmente dizer que a reafirmação de tais direitos e garantias servirá como empecilho ou desestímulo à celebração dos acordos de colaboração premiada."

CONCLUO
Trata-se, entendo, apenas do devido processo legal. Um cumprimento antecipado de pena, a título de acordo, que possa beneficiar o colaborador é coisa distinta do definitivo perdimento antecipado de bens, que ignora o devido processo legal e garantias constitucionais. "Ah, mas há o acordo..." Contra a Constituição e contra a própria lei que regula a delação? Inexiste liberdade para uma pessoa, por exemplo, para fazer leilão público de um dos rins, de uma das córneas... Javier Milei chegou a flertar com a ideia. Mas até ele desistiu.

"Reinaldo poderia ser assim garantista com os denunciados por golpismo..." Eu sou. De resto, Bolsonaro segue fazendo discurso golpista, né? Repudio de forma veemente e resoluta todas as tentativas de associar à esbórnia da Lava Jato ao cumprimento do devido processo legal nas ações relatadas pelo ministro Alexandre de Moraes.

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Todo mundo sabe, já disse e escrevi dezenas de vezes, que não sou um entusiasta das delações. Mas elas existem. Que se cumpram rigorosamente a Constituição e as leis. De resto, estou apenas defendendo a ideia singela de que a punição definitiva se dê depois do trânsito em julgado.

Não é assim tão exótico.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.