Reinaldo Azevedo

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Bolsonaro usa hospital de picadeiro no circo da extrema direita e se dá mal

Não duvido de que a condição de saúde de Jair Bolsonaro seja delicada. Suponho que médicos responsáveis não participariam de uma patuscada. Além dos boletins, há o que se pode perceber; as evidências fáticas; a literatura disponível sobre o seu quadro — aquilo que pode ao menos ser compreendido por leigos e leitores dedicados —; as imagens que ele faz questão de, digamos, esfregar na cara do público, numa exposição permanente, de alcance obviamente político e publicitário, das agruras por que passa. E qualquer pessoa, já escrevi e falei tantas vezes, de bom sentimento só pode desejar que ele se cure — também porque tem contas a acertar com a Justiça e com as escolhas que fez. Dito isso, constate-se: mais uma vez ele transformou o hospital, desta feita o DF Star, num picadeiro de circo ruim. Nesta quarta, o ex-presidente armou uma cena patética, constrangendo uma servidora pública, enquanto alguém diligentemente filmava a cena, armada para viralizar nas redes.

Uma oficial de Justiça, como sabem, foi ao hospital para lhe entregar um documento que o notifica da abertura da ação penal pelo STF e o intima a apresentar a defesa. É a regra do jogo. Ninguém estava lá para arrancá-lo do leito; para levá-lo para a delegacia mais próxima ou para metê-lo no xadrez. Ele sentiu o cheiro do que considerou ser uma oportunidade e decidiu gravar um vídeo em que se apresenta como vítima de Alexandre de Moraes, apelando até a Hitler... Vai me obrigar a lembrar quem já apareceu em más companhias em matéria de neonazismo. Chega a simular um chilique com um funcionário do hospital que parece lhe dizer ser necessário verificar sua pressão arterial. E passa a constranger a servidora pública que apenas fazia o seu trabalho.

Uma nota do STF explicou:
"A citação dos réus (Núcleo 1) informando o início da ação penal e a intimação para apresentação de defesa foram determinadas em 11 de abril.
Todos os réus já haviam sido citados entre os dias 11 e 15 de abril.
Em virtude da internação do ex-Presidente Jair Bolsonaro, foi determinado que se aguardasse uma data adequada em que pudesse, normalmente, receber o oficial de Justiça.
A divulgação de live realizada pelo ex-Presidente na data de ontem (22/4) demonstrou a possibilidade de ser citado e intimado hoje (23/4)."

O QUE DIZ A LEI. E O PICADEIRO
A informação é de uma objetividade irrespondível. Define, com efeito, o Artigo 244 do Código de Processo Civil:
Art. 244. Não se fará a citação, salvo para evitar o perecimento do direito:
IV - de doente, enquanto grave o seu estado.

A jurisprudência a respeito é clara: até um doente em estado grave — o caso de Bolsonaro é certamente sério, mas a ponto de impedir uma citação? — pode receber o documento no caso de haver "perecimento de direito". Como diria certo pensador, a atuação da servidora, a serviço do Supremo, está rigorosamente "dentro das quatro linhas" do Código.

Pois é... Na segunda, dia 21, Bolsonaro concedeu uma entrevista ao apresentador Cézar Filho, do SBT. Na terça, participou de uma "live" com os filhos — só faltou a presença eloquente de Jair Renan — sob o pretexto de vender capacete de grafeno... É, claro, deitou falação contra o STF, evidenciando que tem condições de assinar uma citação. Vale dizer: ele nem se enquadra, para os efeitos da lei, na condição de "doente em estado grave".

O senador Flávio Bolsonaro, sócio do papai no troço dos capacetes, aproveitou para nos brindar, formado que é em direito, com o seu entendimento sobre o ataque às respectivas sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023:
"Ninguém concorda com essas punições absurdas, covardes, exageradas, que estão sendo aplicadas contra pessoas trabalhadoras, honestas, inocentes, que, no máximo, promoveram algum ato algum ato, ali, de depredação de patrimônio público, que a pena é baixíssima. Essas pessoas que estão no Supremo Tribunal Federal eram para ser julgadas em primeira instância. E mais: eram para ser julgadas em juizados especiais, que é onde tem ali as pequenas, causas como chamavam antigamente".

Para esse gênio da raça, depredar o Supremo, o Congresso e a sede do Poder Executivo é coisa irrelevante, própria de pessoas, como diz, "inocentes".

Na terça, Valdemar Costa Neto visitou Bolsonaro na UTI. Nesta quarta, foi a vez do pastor Silas Malafaia. Segundo o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante (RJ), o ex-presidente está cuidando pessoalmente da redação de um novo projeto de lei de "anistia" — apelido de impunidade na boca dessa gente.

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Então vem a pergunta óbvia: ele tinha ou não condições de assinar uma citação para "evitar perecimento de direito"? A resposta é "sim". Ou não estaria usando a sua condição para articulações de natureza política e para conceder entrevistas e promover "lives" em que, posando de falso Messias, mas de verdadeiro Bolsonaro, faz publicidade do próprio padecimento para obter ganhos políticos, com ataques ao STF que vão da fúria ao deboche.

CONSTRANGENDO UMA SERVIDORA PÚBLICA
A servidora do STF que foi levar a citação deixa claro que o documento é datado de 11 de abril e que já havia conversado com os advogados do ex-presidente. Assim, ele poderia alegar qualquer coisa, menos surpresa. Mas estava representando para a câmera: "Quem mandou a senhora aqui?" Ora, obviamente era um despacho do relator. Mas queria ouvir o nome "Alexandre de Moraes". Indaga se ela tem a noção de que está num quarto de UTI...

Mas não era o refúgio e a proteção onde ficam os pacientes em tratamento intensivo quando concedeu a entrevista ou quando participou da live. Segue não sendo uma área restrita quando faz articulações políticas com Costa Neto ou Malafaia. Relembro trecho da nota do Supremo: "A divulgação de live realizada pelo ex-Presidente na data de ontem (22/4) demonstrou a possibilidade de ser citado e intimado hoje (23/4)."

Bolsonaro chega a dizer à oficial de Justiça que não sabia da citação — o que seria desmoralizante para seus advogados se verdade fosse — porque "tudo no Supremo é secreto". Ao que ela responde com simplicidade desconsertante porque apenas factual: "Esse mandado aqui não está em segredo de Justiça". O homem insiste: "Tudo é segredo ou secreto. Tanto é que eu não tive acesso, meus advogados, a grande parte dos autos, inclusive a minuta do golpe. Ninguém tem conhecimento da minuta do golpe até hoje (...)" E tem de ouvir: "Mas o ministro tirou o sigilo dos autos".

Aí o doente que estaria incapacitado de assinar uma citação faz um longo discurso — o vídeo postado nas suas redes tem pouco mais de 11 minutos —, ouvido pacientemente pela servidora, como se aquele fosse o local para seu proselitismo rombudo. Ao fazê-lo, provou uma vez mais que estava em plenas condições de receber a citação. Está lúcido, consciente — até onde consegue ser uma coisa e outra, no seu máximo possível — e com a voz firme. Tanto é assim que dispara gritos contra um funcionário do hospital que parece dizer alguma coisa sobre a necessidade de verificar sua pressão arterial.

Passou, então, a acusar o Supremo, Alexandre em particular, de conspirar contra ele, sustentando haver um complô para tirá-lo da vida pública. Voltou a fazer acusações irresponsáveis contra o TSE e o ministro Benedito Gonçalves, do STJ, que integrava a corte eleitoral, não sem antes dizer coisas incompreensíveis, como de habito:
"O que está em jogo não sou eu. O que está em jogo é o futuro do meu país. Eu apenas sou um obstáculo entre eu e o país".
Não me perguntem o que quer dizer porque não sei. Nem ele. Já que não faz sentido. E isso nada tem a ver com seu abdômen. O local que dá à luz frases como essa está como sempre esteve.

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Olhando para a câmera, diz que não vai fugir do país e emenda: "Eleição sem Jair Bolsonaro é uma negação da democracia".

Pergunta: por que a pobre senhora estava a ouvir aquelas coisas? O que poderia fazer? Ocorre que ele não falava para ela. Mais uma vez, usava o hospital como picadeiro de circo ruim. Num dado momento, afirmou: "O pessoal lá dos tribunais do Hitler também cumpria missão: botar os judeus na câmara de gás".

Dizer o quê? Os maiores amigos que Beatrix von Storch, neta do mais longevo ministro de Hitler, tem no Brasil são Jair e Eduardo Bolsonaro. Até aí, ela poderia nada ter a ver com as opções do avô. Ocorre que é uma das lideranças mais importantes do Alternativa para a Alemanha, partido de extrema direita coalhado de... nazistas. Em reunião recente com extremistas de vários lugares do mundo, na qual Eduardo foi saudado, Steve Bannon, o fascistoide americano, cumprimentou o Alternativa com a mão estendida, vocês sabem, como faziam os discípulos do facinoroso. É muito impressionante que Bolsonaro não consiga atacar nem mesmo o nazismo sem ter de se explicar.

ENCERRO
Não haverá anistia, e Bolsonaro não será candidato. O espetáculo deprimente que estrelou no hospital é um jogo desesperado para tentar controlar a corrida na direita e na extrema direita, ainda que isso custe um embate entre o Congresso e o Supremo.

Quem minimamente responsável, ao assistir à sua performance, seria capaz de pensar: "Esse é o líder de que precisamos"?

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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