Federação? O Arenão da ditadura voltou. Contra 'os últimos 40 anos', claro!
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Tanta água passou por baixo da ponte, não é?, incluindo tramoia para dar um golpe de Estado, e eis que o Arenão da ditadura está de volta, agora na democracia, que sobreviveu. Por obra de quem mesmo? Ah, claro! Do Supremo Tribunal Federal e daqueles que estavam no campo oposto ao de Jair Bolsonaro. Quantos foram os líderes da direita que tiveram a coragem de realmente quebrar lanças contra as tentações golpistas? Nos 40 anos da redemocratização e nos 37 da Constituição, um frentão partidário se junta com o objetivo explícito, declarado — ao menos para as elites —, de pôr fim a um esboço, a uma manifestação muito tímida, de estado de bem-estar social rascunhado pela Carta de 1988.
Progressistas e União Brasil anunciaram ontem a formação de uma federação. O grupo tem tal gigantismo que acomoda, por enquanto, até o risco de que tudo dê errado. É tudo muito grande: 109 deputados federais; 14 senadores; 1.343 prefeitos; seis governadores; R$ 953,8 milhões em Fundo Eleitoral e R$ 197,6 milhões em Fundo Partidário, em números de 2024. Empata com o PL e PSD no Senado. No resto, os bravos serão primeiros em tudo.
Cumpre notar que a federação também bate recorde em número de ministérios no governo Lula: são quatro. Davi Alcolumbre (União-AP), presidente do Senado, tem na sua cota Waldez Goes (Integração Nacional) e Frederico Siqueira (Comunicações). Do União propriamente, há Celso Sabino (Turismo). André Fufuca, do PP, comanda os Esportes. Por ora, não se fala em deixar os cargos. Mas a marca do Arenão de agora não nega a origem.
AS APOLOGIAS A UM GOLPISTA
A federação surge com elogios rasgados de ACM Neto, vice do União Brasil, a Bolsonaro, aquele que reuniu a cúpula do governo em julho de 2022 para impedir a realização da eleição e que, derrotado na urna, tentou articular um golpe de estado. Afirmou sobre o líder da extrema direIta:
"Bolsonaro é um personagem político com um tamanho e densidade eleitoral inegável no campo da direita. Ninguém pode querer construir um projeto de enfrentamento ao PT sério, competitivo e vitorioso sem considerar isso. Tem que considerar o peso e o tamanho de Bolsonaro; é preciso dialogar."
Dialogar, como se nota, com quem tentou dar um golpe, mas jamais com aquele que seria o golpeado. É uma escolha, reitero, que tem história.
O Progressistas é da linhagem direta da Arena, o partido da ditadura: PDS, Partido Progressista Reformador, Partido Progressista e, finalmente, Progressistas. O União Brasil era costela do PDS, com o qual rompeu para dar à luz o que veio a ser o PFL. Mais tarde, vira Democratas e, depois, União Brasil, quando se fundiu com o que restou do PSL que havia elegido Bolsonaro.
O ministro Sabino diz acreditar que a federação ainda caminhará com Lula em 2026. Bem, não parece haver a menor chance de que seja assim.
O Progressistas queria que o deputado Arthur Lira (PP-AL) chefiasse a arranjo. Antônio Rueda, que preside o União e não se dá assim tão bem com Davi Alcolumbre (AP), presidente do Senado, não topou. Rueda e o senador Ciro Nogueira (PI), que comanda o Progressistas, vão dividir a presidência dessa multidão até dezembro. O resto se vê depois.
AS AMBIÇÕES
Há ambições presidenciais em máquina tão vistosa. A pré-candidatura à Presidência do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União), está lançada. Nogueira finge querer Bolsonaro. Aposta todas as fichas em Tarcísio de Freitas e atua para ser seu vice. Vai ser o quê? Há dificuldades regionais, algumas no seio das próprias legendas. Vão se resolver em nome de projeto maior? A ver.
O manifesto de lançamento da federação, lido por Ciro e Rueda, não resiste a uma análise séria quando se contrasta com os votos de boa parte das respectivas bancadas no Congresso. Querem responsabilidade fiscal e social. Como votaram os valentes no caso da manutenção da desoneração do tal Perse ou dos 17 setores? O valor pornográfico das emendas atende a objetivos tão nobres?
O Arenão saúda a democracia dos últimos 40 anos (ufa!), mas avança para o bestialógico com uma tal "demostagnação". Sim, democracia com estagnação. Santo Deus! A saída? Esta:
"Esse Choque exige uma Reforma Modernizadora do Estado. Que será mais que uma simples reforma administrativa. Deve promover a inovação, com o uso intensivo e extensivo de fórmulas avançadas de tecnologia de gestão; repensar a dimensão dos entes estatais; e revisitar a estrutura de cada um dos poderes. Manter o tamanho atual e o peso do Estado é estar na contramão do progresso inscrito em nossa bandeira. É agir em detrimento da população e sobretudo dos que mais precisam dele. O Estado deve ser forte e decisivo na promoção da saúde da nossa gente, na educação que transformará o destino dos jovens e impulsionará a produtividade do país, na segurança e no combate à violência que hoje atemoriza as famílias de todas as classes, e na assistência social aos vulneráveis. E, de outro lado, deve abrir espaço para que a economia do país possa florescer. O Estado não pode continuar sendo um obstáculo à prosperidade."
É música para certos ouvidos. O que quer dizer exatamente? Ninguém sabe. De concreto, por exemplo, tem-se que Nogueira não gosta da ideia de que a isenção de Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil seja compensada com uma taxação modesta dos ricos. Gostoso é escrever manifesto lastimando que o país esteja em 81ª posição no PIB per capita, mas se sabote qualquer tentativa de fazer os endinheirados pagar ao menos o mesmo imposto pago pelos pobres. Lembro das brutais dificuldades enfrentadas pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda) para taxar os fundos exclusivos e as "offshores". Os bacanas acusavam "elevação da carga tributária"...
Vamos dar nome aos bois? É claro que a formação dessa federação mira uma candidatura, e há um nome hoje que está filiado ao Republicanos, mas que pode atrair o Arenão: Tarcísio de Freitas. Já está claro que parte considerável desse aglomerado toma Bolsonaro como uma de suas, digamos, referências, o que não deixa de ser um atraso até em relação à criação do PDS, né?, que ao menos tentava disfarçar a sua vertente golpista...
O governador de São Paulo participou ontem de um evento no mercado financeiro. Afirmou:
"Se você tem um problema fiscal hoje, e, de fato, você tem, não é nada que mexendo três, quatro, cinco alavancas, a gente não bote o país no rumo novamente. E a receita está posta: a gente está falando de desindexação do mínimo, desvinculação de receita, uma reforma orçamentária, uma reforma administrativa que realmente corte custos, retomar um programa de privatizações e concessões (...) Tem uma questão de modelo mental, né?, uma questão de... O pessoal tá querendo operar com um modelo de 20 anos, atrás ou 30 anos atrás, que cabia numa determinada circunstância e hoje não cabe mais. O mundo mudou muito, os desafios são outros (...). Se você fosse para mim e perguntasse, há um tempo atrás, um ano atrás, se seria possível o Milei cortar 5 % do PIB de gasto público em um ano, eu diria: 'Não, isso não é possível, mas foi. Eles fizeram isso lá e observe o que que aconteceu: a inflação caiu, e o fluxo de capital aumentou".
Tarcísio dá alguma concretude ao palavreado da tal Federação. A "modernização" é um processo de "mileização" da economia brasileira, como se ambas tivessem a mesma complexidade. "Desindexação" do mínimo significa o que... a palavra significa, vale dizer, sem correção nem mesmo da inflação? A desvinculação de receitas tem uma tradução prática: redução das verbas de saúde e educação. No modelo Milei, a reforma administrativa significaria uma demissão em massa de milhares de servidores públicos. Seria concentrada em quais setores? No caso das privatizações, quais empresas entrariam na lista das ofertas.
Vocês não ficam com a impressão, às vezes, de que a direita e a extrema-direita nunca estiveram no poder? De que o modelo econômico do Brasil é uma invenção dos progressistas? Eu não estava lá: talvez Tarcísio também tenha pregado a redução drástica das emendas parlamentares e a revisão dos R$ 650 bilhões anuais em incentivos e desonerações — e com a mesma ênfase que deu à desindexação do mínimo.
NÃO PODE PROPOR ESSAS COISAS?
"Ah, Reinaldo, é inaceitável propor essas coisas?" Claro que não! Desde que se o faça com clareza. Que o candidato da "Federação" e quem mais a ele se juntar, Tarcísio ou outro, diga:
- vamos congelar o mínimo;
- vamos cortar R$ X bilhões em Saúde e Educação;
- vamos fazer demissões em massa;
- vamos vender a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa;
- já que o padrão é Milei, não vamos mais arcar com a dívida dos Estados; chega de farra!
"Mas e as emendas? E as desonerações? E os juros subsidiados para alguns setores privilegiados?"
"Calma, pessoal! Temos de começar por algum lugar... Vamos melhorar a vida dos pobres cortando benefícios dos pobres! Parece contraditório, sabemos, mas vai funcionar".
Vai que os pobres acreditem.
Como diz o manifesto:
"Temos pressa! Liberando as forças vivas do desenvolvimento com um Choque de Prosperidade, o 'país do futuro' chegará logo mais!"
Sem descartar Bolsonaro, é claro! Deve-se incorporá-lo para evitar a tal "polarização", né?, que é coisa muito feia. Chega dessa gente que decide polarizar com golpista! A tese encontrará apoio em setores antes hostis à cultura antidemocrática, a imprensa entre eles. Hoje o golpismo virou parte do cardápio aceitável na mesa da impostura nacional.
PS: Tarcísio vai propor um aumento de 10% no salário mínimo estadual, para R$ 1.804. O projeto de lei com o valor, superior à inflação do último ano medida pela INPC (4,77%), será enviado nesta quarta à Assembleia. O valor é 18,84% superior ao mínimo nacional: R$ 1.518. "Ué, mas não é para desindexar?"
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