Muda cenário da tragicomédia mitômana; de golpe de estado e estado de golpe
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Jair Bolsonaro troca o palco de sua tragicomédia da vida real. Deixou o hospital DF Star neste domingo. Melhor assim. Estamos quase todos na torcida por sua plena recuperação. Os únicos que querem um mártir de suas próprias escolhas desastradas e desastrosas é a extrema direita. Para ela, o mito morto — e mitos, só os há nessa condição — vale muito mais do que o vivo, que junta a fabulação à mentira e trava as articulações eleitorais do campo reacionário.
"Está dizendo que o mal de Bolsonaro era cascata, Reinaldo?" Eu não! Até onde sei, a situação era realmente delicada e ainda inspira cuidados especiais. Espero que os médicos o tenham convencido a fazer a coisa certa. E, claro!, que eles próprios optem pelo melhor caminho. No boletim médico de sexta, informavam que não havia previsão de alta. No domingo, lá estava ele, felizmente, a acenar para seguidores na porta do hospital. No sábado, o paciente expôs nas redes a foto do abdômen aberto. "Imagens fortes", como alertaram os sites noticiosos. Antes, houve a exposição da sutura. "The show must go on"...
O palanque em favor da impunidade para golpistas ao menos muda de lugar. O leito de hospital volta a ser um lugar um pouco mais respeitável. A sequência impressiona;
11/04: passa mal e é internado em Natal;
12/04: deixa o hospital Rio Grande e é transferido para o DF Star, em Brasília; na saída, faz discurso político a médicos e enfermeiros;
13/04: é submetido a uma cirurgia. Começam os boletins que, invariavelmente, dão conta da gravidade do seu quadro, com veto a visitas;
21/04: concede entrevista ao SBT;
22/04: recebe a visita do presidente do PL, Valdemar Costa Neto; no mesmo dia, faz uma live com filhos e com o piloto Nelson Piquet. Ele vende capacete de grafeno e ataca o Supremo;
23/04: recebe a citação da oficiala da justiça, que deixou claro que negociou a sua entrada no hospital com a direção do estabelecimento e com a defesa do ex-presidente. Mas foi submetida a constrangimento, como se tivesse invadido a UTI;
23/04: ainda com visitas proibidas, recebe o pastor Silas Malafaia;
24/04: boletim médico aponta piora clínica, com elevação da pressão e enzimas fora do padrão; nas redes, as milícias digitais bolsonaristas culpam tanto a servidora como o ministro Alexandre de Moraes;
29/04: o médico Cláudio Birolini e Bolsonaro protagonizam o show da retirada da sonda nasogástrica. É certo que se trata de um procedimento sofrido. Mas se escolheu o caminho do espetáculo. Nas redes, teve até fundo musical;
02/05: boletim informa que segue internado sem previsão de alta;
03/05: boletim prevê alta para os próximos dias;
04/05: um "hoje" ou "amanhã" não deixam de estar incluídos nos chamados "próximos dias" em relação a "ontem", eu sei... Saiu e acenou para os fãs.
Submetida à política, a medicina pode ter um futuro mais incerto do que já é de sua (ou da nossa) natureza. Também aí a gente poderia cantar com Gil: "Mistério sempre há de pintar por aí..." O problema começa a ser maior quando o passado também se torna instável. Como se sabe, Roberto Macedo, uma estrela da profissão, que cuidou de Bolsonaro nas outras intervenções, foi tratado de maneira indigna, como se não tivesse feito a coisa certa, o que é, até onde me informam os especialistas, falso. No mundo da medicina como showbiz, sempre se pode disputar uma nesga da glória.
AO PONTO
Independentemente da gravidade do quadro, fica escandalosamente evidente que, mais uma vez, Bolsonaro usou a sua saúde para obter benefícios políticos. Esperava que as agruras por que passou, convertidas em martírio de apelo religioso e místico, decidissem a sorte da impunidade que tenta patrocinar no Congresso. Em vez disso, viu avançar a possibilidade de que se costure uma solução que concorra para minorar as penas daqueles que são considerados, para ficar no clichê, "peixes pequenos" no ato golpista de 8 de janeiro de 2023. Mas não a anistia.
Não vão desistir com facilidade, sabemos. Na CCJ da Câmara, em parecer de pornografia política explícita, o deputado Alfredo Gaspar (União-AL) propôs que a Câmara suspenda a ação penal contra Alexandre Ramagem (PL-RJ) pelos cinco crimes de que é acusado — e isso já é inconstitucional. Achando pouco, resolveu estender o, digamos, "benefício" para todo o núcleo de golpistas a que pertence Ramagem, incluindo... Bolsonaro.
Aqui e ali, reacionários, idiotas e oportunistas abusam de palavras como "polarização" e "pacificação", sempre a sugerir que o preço de se "virar a página do país" — seja lá o que isso signifique — é empurrar os crimes dos golpistas para baixo do tapete. Não punir a tentativa de golpe de estado seria o mesmo que viver em permanente estado de golpe. A razão é simples: sem a punição, eles vão tentar de novo e sempre. Está na história. A quartelada que não se deu em 1955 e em 1961 foi desfechada em 1964. "Ah, aquilo não acontece de novo..." Não? Ainda que assim fosse, a impunidade, nesses casos, asfixia as instituições.
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