Leão 13: mudar os ricos contra o socialismo. E Leão 14? Contra a barbárie

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Na mística católica, o Espírito Santo inspira os cardeais a fazer a melhor escolha para a cristandade e para a Igreja. No mundo dos homens, onde o escrutínio se dá, não se viu pomba nenhuma. Só uma das gaivotas que atormentam há muitos anos a vida dos romanos posava, no seu papel de impostora, para os cinegrafistas ao lado da chaminé da Capela Sistina. Tenha sido o Santo Espírito o intercessor, tenha sido alguma mente humana a articular o cardeal Robert Prevost como o sucessor de Francisco, o colégio de cardeais tomou uma decisão prudente.
Dada a origem agostiniana — e ele fez referência em sua fala inicial à obra "Cidade de Deus", de santo Agostinho —, o novo Sumo Pontífice encarna a convicção de que, por intermédio da fé, os fiéis podem se livrar dos vícios próprios da "cidade dos homens". Mas, ao responder por qual nome queria ser chamado e anunciar "Leão 14", foi como se dissesse: "A fé salva almas, mas a intervenção humana, ainda que tocada pela luz divina (para os que creem, claro!), pode salvar o mundo. E é claro que teremos de falar de Leão 13. Aquele, como este, viveu o limiar de uma nova era. Qual será o conteúdo da "Rerum Novarum" do Sumo Pontífice que assume em 2025?
Prevost não chegava nem a ser um azarão nas mesas de apostas. Como observei neste UOL e no programa "O É da Coisa", era remota a possibilidade de que a Igreja se movesse pendularmente do progressismo moderado de Francisco para o conservadorismo. O antecessor de Leão 14 nomeou 108 dos 133 cardeais que compunham o colégio eleitoral. E, não sem razão, os olhos se voltaram para nomes oriundos da Ásia e da África, onde o catolicismo está em expansão. Convenham: depois de dois pontificados conservadores — o de João Paulo 2º e o de Bento 16 —, Francisco foi uma surpresa, seja por sua origem jesuítica, seja por seu apego a uma Igreja que pretendia ser mais do "passo" do que do "paço", para lembrar uma distinção de Padre Vieira, outro jesuíta. Assim, sempre há a possibilidade de uma escolha surpreendente. Tudo bem pensado, Prevost agora parece uma saída óbvia, ainda que não se falasse a respeito.
Na sua fala inicial, destacou o compromisso da Igreja com a fé de salvação, mas que não vive da contemplação:
"Esta é a paz de Cristo ressuscitado: uma paz desarmada e que desarma: humilde e perseverante, que provém de Deus. Deus que nos ama a todos, incondicionalmente (...). Deus nos quer bem. Deus nos ama a todos. O mal não prevalecerá. Estamos todos nas mãos de Deus. Portanto, sem medo, unidos, de mão dadas com Deus e entre nós, sigamos adiante. Somos discípulos de Cristo. Cristo nos precede. O mundo precisa da sua luz. A humanidade necessita de pontes para que seja alcançada por Deus e por seu amor. Ajudai-nos também vós. Unam-se aos outros para construir pontes, com o diálogo, com o encontro, unindo-nos todos para sermos um só povo, sempre, em paz. Obrigado, papa Francisco!"
Não parece que haverá, dados os vínculos do novo papa e sua trajetória, um movimento de ruptura com o antecessor, de quem era muito próximo. Num mundo alimentado pelo ódio da extrema direita de viés inequivocamente neofascista, Francisco falou contra as guerras, saiu em defesa dos imigrantes, atacou as iniquidades sociais e a desigualdade, manifestou-se em favor de causas ambientais e procurou abraçar pessoas excluídas da Igreja, notadamente a população LGBTQIA+, ainda que essa manifestação em particular se tenha dado mais no campo da retórica do que de alguma mudança efetiva no seio da própria instituição.
Dadas opiniões anteriormente emitidas pelo novo papa, tudo indica que Leão 14 vai esfriar um tanto o debate sobre costumes, gênero e identidade — e, nesse sentido, é possível que se tenha um papa mais conservador, sem, no entanto, promover nenhuma guinada reacionária — para se concentrar, no que respeita, digamos, à mundanidade, nas questões sociais. E é nesse ponto que se deve evocar Leão 13, por ele homenageado.
O LIBERALISMO SELVAGEM E O SOCIALISMO
Num pontificado de 25 anos, entre 1878 e 1903, Leão 13 teve tempo de escrever muitas encíclicas, e a mais notável, que fez história, chama-se "Rerum Novarum" -- "Das Coisas Novas". É o marco inicial da chamada "doutrina social da Igreja".
O documento merece ser lido ainda hoje. A íntegra em português está aqui, no site do Vaticano. Algumas datas são bastante eloquentes e ajudam a entender o documento. Aquele papa nasceu em 1810. Tinha 38 anos quando veio à luz o "Manifesto Comunista", de Marx e Engels, e 61 quando aconteceu a Comuna de Paris (1871). Foi o chefe da Igreja Católica entre 1878 e 1903, quando a agitação socialista varria a Europa. Morreu dois anos antes do "Domingo Sangrento" de São Petesburgo, em 1905, que prenunciava a Revolução Russa, em 1917.
Prestem atenção a este trecho:
"Em todo o caso, estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida. O século passado destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as corporações antigas, que eram para eles uma proteção; os princípios e o sentimento religioso desapareceram das leis e das instituições públicas, e assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isto deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e de opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos proletários."
Alguém aí ficou com a impressão de que Leão 13 era um comunista perigoso, desses que seriam atacados por bolsonaristas nas redes sociais? Então convém ler este outro trecho:
"Os socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens de um indivíduo qualquer devem ser comuns a todos e que a sua administração deve voltar para os Municípios ou para o Estado. Mediante esta transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário: é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social."
Pronto! A Igreja que atacava o liberalismo que condenava milhões à miséria via no socialismo um risco ainda maior porque, entende-se lendo toda a encíclica, que, além de não cumprir os desígnios que anunciava, subvertia a ordem social. Para Leão 13, a propriedade era um direito natural. Mas prestem atenção:
"A força destes raciocínios é duma evidência tal, que chegamos a admirar como certos partidários de velhas opiniões podem ainda contradizê-los, concedendo sem dúvida ao homem particular o uso do solo e os frutos dos campos, mas recusando-lhe o direito de possuir, na qualidade de proprietário, esse solo em que edificou, a porção da terra que cultivou. Não veem, pois, que despojam, assim, esse homem do fruto do seu trabalho; porque, afinal, esse campo amanhado com arte pela mão do cultivador mudou completamente de natureza: era selvagem, ei-lo arroteado; de infecundo, tornou-se fértil; o que o tornou melhor, está inerente ao solo e confunde-se de tal forma com ele, que em grande parte seria impossível separá-lo. Suportaria a justiça que um estranho viesse então a atribuir-se esta terra banhada pelo suor de quem a cultivou? Da mesma forma que o efeito segue a causa, assim é justo que o fruto do trabalho pertença ao trabalhador."
Ficou com a impressão de que Leão 13 era uma espécie de inspirador do MST? Calma! Ele advertia ao condenar o socialismo:
"Mas, além da injustiça do seu sistema, veem-se bem todas as suas funestas consequências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privados dos seus estímulos, e, como consequência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na miséria. Por tudo o que nós acabamos de dizer, se compreende que a teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles membros a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a tranquilidade pública. Fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a estabelecer por todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular."
Leão 13 avança:
"Entre os deveres principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém. Certamente, para fixar a justa medida do salário, há numerosos pontos de vista a considerar. De uma maneira geral, recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a miséria e especular com a indigência, são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e humanas; que cometeria um crime de clamar vingança ao céu quem defraudasse a qualquer no preço dos seus labores: 'Eis que o salário, que tendes extorquido por fraude aos vossos operários, clama contra vós: e o seu clamor subiu até aos ouvidos do Deus dos Exércitos'. Enfim, os ricos devem precaver-se religiosamente de todo ato violento, toda a fraude, toda a manobra usurária que seja de natureza a atentar contra a economia do pobre, e isto mais ainda, porque este é menos apto para defender-se, e porque os seus haveres, por serem de mínima importância, revestem um caráter mais sagrado. A obediência a estas leis -- perguntamos nós -- não bastaria, só de per si, para fazer cessar todo o antagonismo e suprimir-lhe as causas?"
VOLTANDO A LEÃO 14
Leão 13 via na voragem socialista, fica claro, o risco de desmantelamento da ordem social, da família e da cristandade. E chamava à responsabilidade os ricos. Um socialista poderia dizer, sem chance de errar, que aquele papa escreveu um documento abertamente contrarrevolucionário, de um anticomunismo às vezes feroz, mas acusando, ao mesmo tempo, as iniquidades que empurravam os operários para a revolução e a revolta.
Por isso, recomenda:
"Como, pois, seria desrazoável prover a uma classe de cidadãos e negligenciar outra, torna-se evidente que a autoridade pública deve também tomar as medidas necessárias para salvaguardar a salvação e os interesses da classe operária. Se ela faltar a isto, viola a estrita justiça que quer que a cada um seja dado o que lhe é devido. A esse respeito S. Tomás diz muito sabiamente: 'Assim como a parte e o todo são em certo modo uma mesma coisa, assim o que pertence ao todo pertence de alguma sorte a cada parte'. E por isso que, entre os graves e numerosos deveres dos governantes que querem prover, como convém, ao público, o principal dever, que domina lodos os outros, consiste em cuidar igualmente de todas as classes de cidadãos, observando rigorosamente as leis da justiça, chamada distributiva."
Eis aí. Esse é o primeiro documento da chamada "doutrina social da Igreja". Robert Prevost não teria escolhido chamar-se Leão 14 se, vivendo o seu próprio limiar — num regime de produção que pode condenar muitos outros milhões ao desemprego e à marginalidade —, não estivesse disposto a mobilizar a Igreja e o mundo não contra a ameaça socialista, que esta não existe mais, mas contra as iniquidades que podem levar a civilização que conhecemos ao caos e ao abismo.
O ocupante do Trono de Pedro deve sempre, como queria santo Agostinho, mirar a "Cidade de Deus". Mas essa é uma construção que só se mostra possível se forem superadas as agruras da "cidade dos homens".
Leão 13 quis reformar os ricos contra o socialismo; Leão 14 terá de educá-los contra a barbárie.
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