Tiro no pé? ADPF sobre Ramagem fará STF julgar inconstitucionalidade óbvia

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O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), decidiu não resistir à pressão do PL e apresentou uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) contra a decisão tomada pela Primeira Turma do Supremo, que sustou apenas parte da ação penal contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ). O relator, por prevenção, será o ministro Alexandre de Moraes. Ou Motta não foi devidamente instruído por sua assessoria jurídica sobre as implicações da ação ou, quem sabe?, dou o benefício da dúvida, enxerga muito longe e está se livrando de diabólicos sortilégios futuros. Vamos ver.
No dia 7, para escândalo do bom senso — e, em parte, o próprio presidente da Câmara o admite —, a Casa decidiu, por 315 votos a 143, suspender o andamento de toda a ação penal contra Ramagem (PL-RJ), embora, segundo dispõe a Constituição, só pudessem fazê-lo no caso de dois dos cinco crimes que lhe são imputados. Os valentes foram adiante: aprovaram a sustação de toda a ação penal contida na Petição 12.100. Vale dizer: todos os outros 33 denunciados (21 já são réus) seriam beneficiados por um dispositivo que protege apenas parlamentares. É uma patuscada.
Nas redes sociais, Motta escreveu:
"Ingressamos nesta terça-feira no Supremo Tribunal Federal com uma ação para que prevaleça a votação pela suspensão da ação penal contra o deputado Delegado Ramagem (PL-RJ). Por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a ser julgada pelo plenário do STF, esperamos que os votos dos 315 deputados sejam respeitados. A harmonia entre Poderes só ocorre quando todos usam o mesmo diapasão e estão na mesma sintonia".
Ninguém se torna presidente da Câmara porque ingênuo ou idiota. Ao entrar com uma ADPF, que será julgada pelos 11 ministros — na hipótese de que seja recepcionada —, Motta já sabe que a peleja larga com cinco votos contrários. Bastará mais um para que a decisão unânime da Primeira Turma seja mantida. "Ah, Reinaldo, mas quando se faz o exame em sede de constitucionalidade, um ministro pode mudar de voto". É possível, mas absolutamente improvável. Assim, de saída, pode-se dizer que o deputado faz a vontade dos bolsonaristas, mas conhece de antemão o resultado. Ou será que existe esse negócio de recorrer ao pleno do tribunal contra decisão de Turma, por intermédio de uma ação que examina de constitucionalidade, na certeza de que vai vencer?
Afirmo acima que o próprio Motta reconhece parte do absurdo cometido pela Câmara. Ele deixa claro que o alcance da ADPF se restringe a Ramagem --, logo, excluem-se os outros 33. Na peça apresentada ao Supremo, a Mesa Diretora da Câmara escreve:
"A Constituição atribui expressamente à Casa Legislativa a competência para deliberar sobre a sustação da ação penal até o julgamento definitivo. Essa atribuição constitucional não pode ser subtraída por interpretação restritiva que desconsidere os efeitos institucionais do processo penal sobre a representação parlamentar".
Epa! Esperem aí. O STF não fez "interpretação restritiva" coisa nenhuma! Apenas aplicou o que está escrito. Os senhores deputados, eles sim, resolveram fazer uma leitura alargada, "fora das quatro linhas", como diria aquele. Relembremos a integra do Parágrafo 3º do Artigo 53:
"§ 3º Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação."
Ramagem e outros respondem por cinco crimes, dois deles relativos a danos ao patrimônio, que dizem respeito aos atos de 8 de janeiro de 2022, e o deputado foi diplomado no dia 16 de dezembro. OK. Sustados estão. Mas os três outros — organização criminosa, tentativa de abolição do estado de direito e tentativa de golpe de estado — são anteriores à formalização de sua eleição. A Câmara cria uma tese: esses três crimes têm conexão com os outros dois. Convenham: se fosse para ignorar o que está expresso na Constituição, faria sentido não livrar o deputado de nenhum dos cinco crimes. Afinal, os relativos ao 8 de janeiro é que derivam dos três outros, cometidos antes da diplomação. Na argumentação especiosa apresentada pela Mesa da Câmara ao STF, o que veio depois é que daria causa ao que veio antes. Não se viu tal circularidade do tempo nem na "Teogonia" de Hesíodo. Quer dizer, lá, sim, mas se trata de mitologia...
INCONSTITUCIONAL
Não tenho nenhuma dúvida de que a decisão da Primeira Turma, que só depende de mais um voto caso a ação seja examinada, será mantida. E considero a ADPF uma excelente oportunidade para que, afinal, se examine a constitucionalidade do Parágrafo 3º do Artigo 53.
Saibam: não foi o constituinte originário que escreveu na Carta que as respectivas casas podem sustar ações penais no caso de crimes cometidos depois da diplomação. Isso é obra da Emenda Constitucional nº 35, de 2001, que deu nova redação à integra do Artigo. E, se querem saber, o Parágrafo 3º é escandalosamente inconstitucional. É apropriado, pois, que seja mesmo examinado numa ADPF. A Constituição viveu 13 anos sem essa patranha.
Ouçam o burburinho que chega dos porões da Câmara. Agora se fala também em sustar a ação penal contra a deputada Carla Zambelli. E, parece, acena-se com a possibilidade de se criar uma categoria que está acima da Justiça: os parlamentares. Diga-me: que outra categoria goza da prerrogativa de conceder a si mesma o privilégio de não ser alcançada pela Justiça? Nem os juízes, obviamente.
"Ah, mas a prescrição é suspensa, e se pode retomar o processo depois..." Ora, como a ação penal estará congelada, condenação não haverá, o que permitirá que o parlamentar concorra à reeleição, num moto-contínuo da impunidade, enquanto perdurarem os mandatos.
Querem saber? Esse Parágrafo 3º do Artigo 53 fere a separação dos Poderes e transforma os senhores deputados e senadores num Judiciário paralelo para os pares. Eles já dispõem dessa prerrogativa quando se trata de juízo político, em processos movidos no Conselho de Ética. Não faz sentido que Câmara e Senado atuem como corte penal especial para julgar seus integrantes.
CONCLUO
Que a ADPF movida por Motta resulte no reconhecimento da arreganhada inconstitucionalidade do Parágrafo 3º do Artigo 53. Ou, então, no limite do aceitável, que se estabeleçam alguns critérios compatíveis com a Carta, não é? A menos que se queira que Câmara e Senado se transformem num valhacouto de corruptos e golpistas, que depois dariam um jeito de livrar a própria cara. Ainda pior: esse "tribunal" pode atuar de forma seletiva, de modo a fazer a vontade de maiorias de ocasião, perseguindo a minoria.
Sem o Parágrafo 3º do Artigo 53, garanto que seria muito mais fácil a Motta o exercício da Presidência da Câmara. Os que decidem praticar banditismo apostando na impunidade certamente tomariam mais cuidado. Consciente ou inconscientemente, ao decidir ceder à pressão dos bolsonaristas e apelar à ADPF, o presidente da Câmara pode contribuir para pôr fim a uma inconstitucionalidade que já dura 24 anos. Se não foi de caso pensado, pode ser um tiro no pé.
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