Bolsonaro sequestrou e matou a direita democrática. E a escolha primordial
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Quem disse que água mole em pedra dura não surte efeito muito além do clichê? Está na vida; está numa ode de Horácio, com o mar Tirreno contra as pedras vulcânicas; está na música "Tempo Rei", de Gil: "Agua mole/ pedra dura/ tanto bate que não restará nem pensamento". Tanto fez o bolsonarismo, tanto insistiu, tanto confrontou o que parecia inamovível — a adesão, depois da redemocratização, da imprensa ao pensamento democrático — que eis aí o golpismo alçado à condição de categoria de pensamento. A direita liberal está morta.
Mesmo depois da derrota, os golpistas jamais desistiram de reivindicar o estatuto de um dos lados do debate, de uma das visões de mundo aceitáveis, de uma das leituras da realidade. Como o Supremo venceu o embate contra as tentações tirânicas e impôs os valores consagrados pela Constituição de 1988, com os fascistoides amargando derrotas em série no tribunal, então a muitos pareceu, inclusive a setores do jornalismo, que o bolsonarismo pode ser um aliado tático contra supostas ambições hegemônicas da Corte. Outro dia, um desses rematados imbecis voltou a atribuir a Rui Barbosa o que nunca escreveu sobre "a pior ditadura ser a do Judiciário"...
Como sabem, a Primeira Turma, por unanimidade, sustou, conforme dispõe o Parágrafo 3º do Artigo 53 da Constituição, o andamento de parte da ação penal contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ): vale apenas para os dois crimes após a diplomação. Segue o curso do três outros, anteriores àquele marco. A Mesa da Câmara entrou com uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) — que me parece instrumento impróprio, mas nem entro nisso agora — para fazer valer parte do que a Câmara aprovou: sustação de todo o processo contra o deputado, mas só contra ele. Os outros 33 denunciados não seriam alcançados por um instrumento que, afinal, concede o privilégio aos parlamentares. Note-se, que, dado o texto aprovado, todos seriam salvos, de cambulhada: a cambulhada da esculhambação geral.
E não é que começou uma grita? "Ah, como ousa o tribunal desrespeitar a Câmara? Como ousa o Supremo se meter na decisão de um outro Poder? Quem esses ministros pensam que são para desrespeitar a vontade dos deputados?" Na sessão de ontem do Supremo, o ministro Flávio Dino disse a coisa certa:
"A Primeira Turma, presidida pelo ministro Zanin, em tema relatado pelo eminente ministro Alexandre de Moraes, se defrontou com esta ideia: a de que a separação de Poderes impediria a Primeira Turma de se pronunciar sobre uma decisão da Câmara dos Deputados. Se assim fosse, nós teríamos uma dissolução da República porque aí cada Poder, cada ente federado, faz a sua bandeira, o seu hino, a sua moeda, e aí supostamente se atende à separação de Poderes. Eu fico pensando no pobre do Aristóteles, que distinguiu governo moderado de governo despótico, tendo, no Reino dos Céus, que ouvir a deformação, milênios depois, da sua ideia, que, como vem sabemos, foi redesenhada pelos liberais: o pobre do [John] Locke, no 'Segundo Tratado de Governo Civil', Montesquieu... Tendo, a esta altura, de imaginar que a separação de Poderes chega ao ponto de suprimir o controle jurisdicional (...)".
Está em curso uma "nova era", como apontou Musil em "O Homem sem Qualidades". É quando "o grosseiro se suaviza", havendo "um pouco de ruindade demais misturado ao que era bom", além de "engano demais na verdade" e "flexibilidade demais nos significados". Os que deveriam informar ao distinto público que a Corte apenas aplica o que vai no texto constitucional — trata-se de informação, não de opinião — perdem-se no "declaracionismo" em nome da pluralidade: "para Fulano, o Supremo pode fazer tal coisa; já para Beltrano, não pode..." Sim, queridos, eu consigo conviver perfeitamente bem com a divergência desde que não me convidem a adular terraplanistas, militância antivax ou a turma que acredita se curar mamando leite cru na teta da vaca...
Vimos na entrevista concedida ao UOL a desenvoltura com que Bolsonaro conta mentiras sobre quase tudo: das vacinas às suas lambanças golpistas. Como diria Caminha, "não estima cobrir suas vergonhas e está acerca disso com tanta naturalidade como tem em mostrar o rosto", daí a energia com que combateu a regulamentação das redes. Ele prospera no vale-tudo. No auge do desatino, defendeu a decisão aberrante da Câmara que suspendeu a ação penal contra Ramagem e os outros 33 denunciados, incluindo ele próprio. Notem: se o pressuposto da sustação é o de que a ação penal seja retomada quando terminar o mandato, como é que isso se operaria para quem mandato não tem? Esse é o cara que, no dia 5 de julho de 2022, reuniu o governo para impedir a realização da eleição. E, no entanto, está claro, ele vai decidir o destino da direita.
No fim das contas, sabem o que revelou a entrevista concedida pelo ex-presidente a Josias de Souza e Carla Araújo? Bolsonaro sequestrou e matou a direita democrática. Essa que restou se mostra incompatível com os valores comezinhos do estado de direito. Não consegue conviver nem com um Judiciário que comete a grande ousadia de aplicar a Constituição. O golpe malogrou, mas é grande o estrago. Preservar as instituições ou apostar na sua degradação segue sendo a escolha primordial. Todas as outras vêm em seguida. Para o bem ou para mal.
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