Reinaldo Azevedo

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Opinião

Rebelo, o reaça rebelde, a lei, graças do Saci e chifre em cabeça de cavalo

O ex-comunista do Brasil e hoje bolsonarista Aldo Rebelo só não vai esperar pelas desculpas de Alexandre mais do que esperou pelo socialismo porque, obviamente, não terá pela frente as décadas que teve militando nas hostes de esquerda. O alinhamento com esse campo ideológico lhe rendeu postos de vulto: presidente da Câmara; ministro das Relações Institucionais; ministro dos Esportes, Ciência e Tecnologia e ministro da Defesa. Por alguma razão, suas utopias — ou, sabe-se lá, distopias — encontraram um abrigo no peito de Jair Bolsonaro. "E você, Reinaldo, não mudou?" Ah, também, como toda gente, estou sujeito a vicissitudes históricas, a circunstâncias que não são de minha escolha — para citar um autor que ele já pode ter apreciado um dia, na hipótese de que o tenha —, mas uma coisa é certa: anuência com golpistas e com discursos afascistados, bem, isso nunca me colheu. Nem há chance de acontecer. E não! Não vou aqui debater a rebeldia reacionária de um ex-comunista. Tenho mais o que fazer. Minha questão é bem outra.

Com todas as vênias, ou sem nenhuma, é tolice ou má-fé a conversa de que Alexandre de Moraes pode ter exagerado na audiência de sexta-feira, quando lembrou ao sr. Rebelo que ele poderia ser preso por desacato se seguisse na toada em que vinha. Resolveu negar o teor golpista de reuniões a que não estava presente, das quais existem testemunhos de dois comandantes militares, além de provas materiais.

Ora, é evidente que ele não tinha como ser testemunha de defesa de Almir Garnier, o ex-comandante da Marinha que anuiu com o golpe, porque nem sequer pertencia ao governo. Não tinha rigorosamente nada a dizer, a não ser, eventualmente, sei lá, exaltar a disciplina de Garnier ao tempo em que este foi seu ajudante de ordens quando estava na Defesa. E só.

Mas Aldo, numa postura que parece estudada, decidiu ir além. Falou para tentar desmoralizar a acusação, testemunhando sobre o que não presenciou e apelando a supostas questões de língua portuguesa para ironizar a investigação como um todo. Também achou que era uma boa ideia inverter os papeis e dirigir uma inquirição ao procurador-geral da República...

Existe um disciplinamento legal para o comportamento de uma testemunha, não é mesmo? Está no Artigo 203 do Código de Processo Penal:
"Art. 203. A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade."

Os "especialistas" que criticam o ministro estão a defender, por acaso, que, num depoimento, o juiz deve permitir que a testemunha — que, note-se, nada testemunhou sobre o fatos que os juntaram a todos na sala de audiência — esculhambe a instrução criminal? Qual é a tese delinquente da hora? O direito que teria a testemunha de, sob o pretexto de exercer a liberdade de expressão, mandar para o lixo do Artigo 203 do CPP?

Não. Ela tem de dizer a verdade do que souber e do que lhe for perguntando a respeito da investigação em curso. Pode, sim, silenciar para não se incriminar porque esse direito constitucional subsiste mesmo para as testemunhas, mas não pode mentir. E, por óbvio, o comportamento que busca transformar a sala de audiências num picadeiro tem de ser punido na forma da lei.

O CASO HAMÍLTON MOURÃO
O hoje senador e ex-vice-presidente Hamilton Mourão falou na condição de testemunha de defesa de Bolsonaro, Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira. Tinha algo a dizer? Vamos ver. Nada há no inquérito da Polícia Federal que aponte que tenha participado da conspirata. Bolsonaro o detestava, como é sabido. Não estava presente, por exemplo, à reunião de 5 de julho de 2022, convocada pelo então presidente para impedir a realização da eleição.

Nada tinha a dizer, por óbvio, sobre as reuniões de Bolsonaro com os comandantes ou sobre a minuta. Disse que não tinha ciência de nenhuma tramoia golpista, que nada lhe foi falado a respeito, ressaltando — e isto me parece verossímil ao menos — que não foi convidado para a conspirata. Todos, claro!, duvidamos que ignorasse ao menos o buchicho. Se sentíamos o fedor das articulações criminosas, por que não ele? Mas notem que nem o juiz (Alexandre de Moraes) nem Paulo Gonet, o procurador-geral da República, cruzaram a linha. Evitaram, por exemplo, uma pergunta que seria muito lógica: "O senhor quer que acreditemos que haveria como o senhor não saber?"

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Embora lógica, a questão seria descabida. As duas autoridades não estavam lá para adivinhar o que Mourão sabia ou não. Reitero: a prescrição legal sobre o papel e o comportamento da testemunha é estrita. E, como se viu, o depoimento transcorreu sem fricção de nenhuma natureza. Mourão negou ciência das articulações golpistas, respondendo o que lhe foi perguntado e, até onde se pode alcançar, falando sobre o que sabia. Como era o vice-presidente da República, é claro que se torna uma testemunha importante da defesa.

Mas e Aldo? "Ah, então ele não poderia estar lá?" A defesa é livre para indicar quem quiser. Se, no entanto, a testemunha nada têm a esclarecer sobre a investigação, como era o caso, isso não lhe faculta a licença de usar o depoimento como um palanque ou como matéria de proselitismo político. É a lei.

MARCELO QUEIROGA E TÁTICA
Nesta segunda, está previsto o depoimento de Marcelo Queiroga, ex-ministro da Saúde. Testemunhará em defesa de Augusto Heleno e de Braga Netto. Vamos ver. Lembro deste senhor a criticar o início da vacinação de crianças contra a covid em São Paulo. Como Bolsonaro havia declarado guerra a João Doria, então governador do Estado, aquele que deveria saudar a imunização resolveu atacá-la.

O doutor, que havia tomado a Coronavac, contraiu a doença — a exemplo de muitos milhares de vacinados mundo afora porque é do jogo. Estávamos todos devidamente informados de que essa possibilidade existia, hipótese em que, na maioria dos casos, a doença se manifestava com menos força. Mas quê... De molho, em casa, ele republicou nos "stories" do seu Instagram, no dia 21 de setembro de 2021, uma postagem delinquente que dizia o seguinte: "Que ironia! Ministro Marcelo Queiroga seguiu todos os protocolos, vacinou com a CoronaVac, usa máscara o tempo inteiro e foi contaminado. O presidente [Jair Bolsonaro] não se vacinou, não usa máscara, estava ao lado dele e não pegou".

O ministro da Saúde divulgava uma mensagem antivacina no mês em que morreram 16.275 pessoas em razão da doença, totalizando 596.800 óbitos no país. O que isso tem a ver com o seu depoimento desta segunda? Na Saúde, sabendo o que sabia, fez o que fez. O que fará sobre o que não sabe?

Indicar testemunhas que nada têm a esclarecer sobre o que está em apuração é, como evidencia o caso de Aldo Rebelo, um modo de criar perturbação na instrução criminal. Estamos certamente todos curiosos para saber por que o sr. Queiroga é uma testemunha virtuosa para os generais Augusto Heleno e Braga Netto. Lembro que, quando depôs na CPI da Covid, em 6 de maio de 2021, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) perguntou 11 vezes se o doutor aprovava o uso preventivo da cloroquina contra a Covid. O destemido médico e ministro, ágil para reproduzir uma postagem antivacina, não teve a coragem de responder. Como "especialista em golpe", talvez ele possa se sair melhor...

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CAMINHANDO PARA O ENCERRAMENTO
Há gente brincando com o insulto à democracia e ao estado de direito, como se estes pudessem aguentar qualquer desaforo. Bolsonaro e sua turma foram hábeis -- e setores da imprensa aderiram à conversa por ideologia (antilulismo) ou estupidez -- em misturar a persecução penal a criminosos com a sucessão presidencial e com a tal "polarização", como se mandar golpista para a cadeia fosse escolher um lado da disputa eleitoral.

Escolhe-se, sim, um lado quando se defende a punição a quem tentou dar um golpe de estado: o da democracia.

Rebelo conseguia ser mais interessante quando estava preocupado com o excesso de estrangeirismos no Brasil ou quando propôs substituir o dia de Halloween pelo do Saci. Lá no sítio do meu avô, o moleque endiabrado podia até fazer trança em crinas, mas jamais procurava chifre em cabeça de cavalo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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