Reinaldo Azevedo

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Opinião

STF cumprirá a Constituição e o Código Civil; imunidade das redes terá fim

O ministro André Mendonça, do Supremo, entra no segundo dia da leitura do seu voto nas duas ações que tratam da constitucionalidade do Artigo 19 do Marco Civil da Internet. Vamos ver como ele termina. Começou mal. Muito mal. Mas que diabos, afinal, está em julgamento? A possibilidade de as redes serem responsabilizadas na esfera civil por aquilo que está em seus canais, ainda que o conteúdo seja gerado por terceiros — e quase sempre é.

O que diz mesmo o tal Artigo 19? Reproduzo:
"Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário."

O que vai acima é uma aberração. Se permanecer como está, as "big techs" mantêm a condição de único setor livre da responsabilidade civil. A ninguém mais se dá essa licença no país. Há leis a respeito.

Vamos aos Artigos 186 e 187 do Código Civil Brasileiro:
"Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

"Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

O Código volta ao tema no Artigo 927:
"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo."

Já imaginaram o vale-tudo em que se transformaria a sociedade brasileira se fossem abolidos? Por que não valeriam para as "big techs"? Mas não valem. E o pretexto é muito nobre: combater a censura e garantir a liberdade de expressão.

É mesmo? Uma ação judicial leva tempo. Até que venha a eventual ordem e que o conteúdo seja retirado do ar, o dano já está feito. E pode ser irremediável.

O curioso é que o próprio Marco Civil da Internet abre uma exceção no Artigo 21:
"Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo."

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Perceberam? Basta a notificação quando se tratar de cenas de nudez e sexo, violando a intimidade. E está certo. E por que não para desafios para que crianças aspirem desodorante ou se mutilem, para pregações racistas, para incitamento a golpe de estado, para atos preparatórios de terrorismo?

AS DUAS AÇÕES
Duas ações estão em julgamento: uma que ainda diz respeito ao finado Orkut, relatada por Dias Toffoli, e outra sobre o Google, cujo relator é Luiz Fux. Os dois ministros apontaram a escancarada inconstitucionalidade do Artigo 19, afirmando que basta a notificação para que a rede se dê por ciente de que existe a demanda para retirar o conteúdo. Pode, claro!, não fazê-lo, mas, aí, em caso de ação judicial e se vier a ser derrotada, terá de pagar a indenização, além, é evidente, de ter de retirar a postagem.

Toffoli avança, num voto que endosso plenamente. Além de bastar a notificação, diz que as redes devem retirar de moto próprio, sob pena de responsabilização caso percam ação judicial, publicações com as seguintes características:
- crimes contra o Estado Democrático de Direito;
- atos de terrorismo ou preparatórios de terrorismo;
- crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou à automutilação;
- crime de racismo;
- qualquer espécie de violência contra a criança, o adolescente e as pessoas vulneráveis;
- qualquer espécie de violência contra a mulher;
- infração sanitária, por deixar de executar, dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias em situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional;
- tráfico de pessoas;
- incitação ou ameaça da prática de atos de violência física ou sexual;
- divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que levem à incitação à violência física, à ameaça contra a vida ou a atos de violência contra grupos ou membros de grupos socialmente vulneráveis;
- divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral.

Na era das ferramentas fornecidas pela Inteligência Artificial, é certo que as "big techs" têm como se organizar. Se não o fazem, não é por burrice natural, mas por ganância industriada, além de eventual viés ideológico.

O ministro Roberto Barroso, presidente do STF, votou pela parcial inconstitucionalidade do Artigo 19. Em casos relacionados aos chamados crimes contra a honra, ele defende que se espere, sim, a decisão judicial, não bastando a notificação.

DE VOLTA A MENDONÇA
Mendonça havia pedido vista ainda em dezembro passado. Já havia emitido alguns sinais ruins:

"Não é talvez o ideal dos mundos, mas a democracia se enriquece também pelas críticas ácidas, e até mesmo injustas, a que as pessoas públicas estão sujeitas, razão pela qual, por exemplo, tenho sérias dúvidas se deveríamos, nessas situações, determinar em si uma retirada (de conteúdos), porque estaríamos cerceando indevidamente as críticas que consideramos injustas".

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Não se trata e nunca se tratou de ser mais crítico ou menos crítico a quem quer que seja. Estamos falando de crime.

Ontem, reincidiu em falas estranhas ao objeto das ações. Qual é mesmo? Relembro: as redes podem continuar a ser os únicos entes imunes à responsabilização civil? Sinto cheiro de proselitismo ideológico nesta fala:
"Ao assumir maior protagonismo em questões que deveriam ser objeto de deliberação por parte do Congresso Nacional, o Poder Judiciário acaba contribuindo, ainda que não intencionalmente, para agudização da sensação de desconfiança hoje verificada em parcela significativa da nossa sociedade".

O Supremo não está votando uma lei. Com a devida vênia, isso é mentira! Estamos falando da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do Artigo 19 do Marco Civil e do monopólio da imunidade de que gozam as redes. Ponto.

Disse ainda:
"Por tudo quanto se apontou especificamente em relação ao fenômeno das 'fake news', diante da sua íntima conexão com os processos de crise institucional e democrática atualmente vivenciados, deles se torna ainda mais imperiosa a adoção de uma postura autocontida".

Mais um pouco, e o ministro acabará sustentando que o ataque aos Poderes, incluindo aquele que ele próprio integra, derivou não do desvario golpista, a galope de "fake news" absurdas, mas do esforço feito pelo próprio tribunal para desmontar as organizações criminosas que as espalham.

BARROSO
Ao retomar o julgamento nesta quarta, o ministro Barroso, presidente do Supremo, lembrou o que dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito nos Artigos 4º e 5º, a saber:
"Art. 4º - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito;
Art. 5º - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum."

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Afirmou o ministro:
"O Judiciário não está legislando e muito menos regulando em caráter geral, abstrato e definitivo as plataformas digitais. A Lei de Introdução diz assim: 'Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso -- no imperativo -- de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito'. Os critérios adotados pelo tribunal para decidir os casos trazidos perante ele só prevalecerão até que o Congresso Nacional legisle, se e quando entender que deve legislar a respeito. E, quando o Congresso legislar a respeito, é a vontade do Congresso que vai ser aplicada pelo Supremo Tribunal Federal, desde que, evidentemente, compatível com a Constituição. Estabelecer os critérios que vão reger os casos que chegarem ao Judiciário é nosso dever e nada tem de invasão à competência dos outros Poderes e muito menos tem a ver com censura".

Na mosca! Enquanto o Congresso decidir não decidir, a lei impõe que o Supremo atue segundo o que define os Artigos 4º e 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito. "Ah, mas e se o Congresso mantiver o privilégio da imunidade civil às redes? Se o tribunal votar pela inconstitucionalidade do Artigo 19, e acho que isso vai acontecer, haverá a responsabilização, não importa a lei que se vote.

A extrema direita e os lobistas das redes fingem que se está votar "sim" ou "não" à liberdade de expressão. Tenho a impressão de que Mendonça também evoluirá por aí. Trata-se de uma falácia. O ministro afirmou:
"A Justiça Eleitoral brasileira é confiável e digna de orgulho. Se, apesar disso, um cidadão vier a desconfiar dela, este é um direito. No Brasil, é lícito duvidar da existência de Deus, que o homem foi à Lua e das instituições".

Tem razão. Pode duvidar de Deus, mas não pode atear fogo às igrejas. Pode duvidar das instituições, mas não pode se juntar numa organização criminosa, inclusive das redes, para dar um golpe de estado. Pode duvidar que o homem foi à Lua, mas não pode ensinar essa "doutrina" em sala de aula como se ciência fosse, em nome da "liberdade de expressão".

Sim, a todos se permite duvidar do sistema eleitoral e até da existência de Deus... Quem diria o contrário? É bem verdade que a vaga que ele ocupou excluía, à partida, não apenas os agnósticos e os ateus, mas também os católicos, os protestantes tradicionais, os judeus, os islâmicos, os budistas, as religiões de origem africana... Tinha de ser alguém "terrivelmente evangélico". Não bastava não duvidar!

De todo modo, eis uma falsa questão. A liberdade de expressão não está em julgamento. Tampouco o direito de duvidar de Deus. O que se vota é se comete ou não ilícito aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, viola direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. A rigor, basta votar o "cumpra-se a lei", já que a Constituição não excepciona ninguém de tal obrigação.

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Mendonça certamente enriquecerá os anais do direito com seu voto de dois dias. Mas conviria que se ativesse ao objeto da votação, não? Os adversários da responsabilização civil vão perder, não importa o tamanho do seu lobby no Congresso.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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