STF retoma julgamento sobre redes; sobrevivência da democracia está em jogo

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O Supremo retoma hoje a votação sobre a responsabilização civil das redes sociais. Na verdade, o que está em julgamento é a constitucionalidade ou não do Artigo 19 do Marco Civil da Internet, que define:
"Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário."
Tal artigo é um dos mais notórios exemplos na legislação brasileira de redação capenga e privilégio disfarçado de propósito nobre. Sob o pretexto de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, promove-se o vale-tudo que acaba por calar e esmagar pessoas. As redes compõem o único ente no Brasil que está livre da responsabilização civil por danos causados a terceiros. Não se preservaram nem a liberdade de expressão nem o direito fundamental à reparação. Os criminosos, no entanto, fazem a festa.
As iniciativas que surgiram no Congresso para regular as redes foram bombardeadas pelas próprias, numa campanha feroz contra qualquer mudança. A questão chegou ao Supremo por intermédio de Recursos Extraordinários. Além de inconstitucional, o texto, como está, viola o Código Civil. Entre os oito ministros que já votaram, só André Mendonça quer deixar tudo como está, sob o pretexto de garantir a tal liberdade de expressão, em nome da qual se cometem pencas de crimes.
Mas em que consiste, afinal, essa responsabilização? Bastará uma notificação para que a rede seja informada de que um determinado conteúdo pode estar causando mal a alguém. Essa simples notificação, obviamente, não obriga a empresa a excluir o conteúdo, mas ela fica exposta ao risco de arcar com uma indenização caso o reclamante realmente recorra à Justiça e vença a ação. Hoje, isso é impossível, o que é uma aberração, não importa o malefício que um determinado conteúdo possa causar a alguém.
Sete ministros já optaram pela ampliação da responsabilidade civil: três consideram o Artigo 19 inteiramente inconstitucional — e é o que penso: Dias Toffoli, Luiz Fux e Alexandre de Moraes. Para quatro outros, a inconstitucionalidade é parcial: Gilmar Mendes, Flávio Dino, Cristiano Zanin e Roberto Barroso. Edson Fachin, que havia pedido vista, manifesta-se nesta quarta, e se comenta que trará uma posição "intermediária" — veremos o que isso significa. Além dele, ainda não votaram Cármen Lúcia e Nunes Marques, que anunciou que deve fazê-lo só depois de uma reunião entre os ministros para buscar um consenso.
Exceção feita a Mendonça, todos concordam num aspecto: a responsabilidade civil das redes sobre conteúdos patrocinados é inequívoca — aliás, era uma particular aberração que não existisse, já que, nesse caso, não se cuida nem mesmo de usar a "liberdade de expressão" como desculpa. Trata-se explicitamente de um negócio.
Os outros divergem sobre hipóteses em que a empresa fica, na prática, exposta a arcar com a reparação. Toffoli sugeriu, e o argumento parece irrespondível, que se use como modelo o que vai no Artigo 21 do próprio Marco Civil, a saber:
"Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo."
Pergunta que não tem resposta: cenas de nudez e atos sexuais de caráter privado merecem a pronta intervenção das redes, mas não a divulgação de pornografia infantil, instigação ao suicídio ou automutilação, terrorismo e crimes contra a democracia? Que sentido isso faz? Os ministros Roberto Barroso e Flávio Dino deram especial ênfase a este aspecto. Nesse caso, é preciso ir além da suficiência da notificação: deve-se exigir das redes o dever adicional do cuidado e da vigilância. Na alegação de crimes contra a honra — calúnia, injúria e difamação —, há ministros que defendem que se mantenha a exigência da decisão judicial para que se possa responsabilizar as empresas.
"Mas o Supremo não está legislando?" Não. Está apenas aplicando os Artigos 4º e 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito, a saber:
"Art. 4º - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Art. 5º - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum."
E olhem que se está a cuidar do mínimo, do que pode ser garantido pelo STF ao determinar o cumprimento da Constituição. Uma regulação digna do nome tem de exigir a transparência dos algoritmos. Convenham: cada vez mais são eles a erigir e a destruir reputações, a subestimar e a superestimar determinados temas, a plasmar a metafísica influente e a fomentar expectativas. E é dispensável que se demonstre que se está a falar, no fim das contas, de escolhas e condicionamentos que são políticos e ideológicos.
A extrema direita não avança, com fúria, nos regimes ainda democráticos porque fomos todos contaminados por miasmas oriundos da natureza das coisas. No limite, o que está em jogo é a sobrevivência da própria democracia.
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