Reinaldo Azevedo

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Opinião

Motta atropela governo em Congresso 'soberano'; hora da luta política, Lula

O despudor que tomou conta do Congresso Nacional é assombroso. Tudo lhe parece permitido, especialmente em tempos em que uma das antenas da sociedade que se dedicavam à vigilância do seu trabalho — refiro-me à imprensa — está obcecada, na quase totalidade, por tornar inviável a reeleição de Lula. As redes sociais têm um peso maior na formação da opinião pública, eu sei, mas o jornalismo profissional ainda serve como um elemento de certificação. Resultado: se já existe um bode expiatório para pagar os pecados, os outros bodes podem pastar à tripa forra. E como pastam!

Vamos ver. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), anunciou nas redes sociais às 23h40 de anteontem que poria em votação nesta quarta o PDL que derrubou o decreto do IOF. Às 23h42, o senador Ciro Nogueira, presidente do Progressistas e um dos dirigentes da Federação Progressista — o outro é Antônio Rueda, que comanda o União Brasil —, repassou a mensagem de Motta para a sua rede de contatos. Mal teve tempo de digitar a retransmissão com os endereços.

É preciso ser uma Poliana bêbada para não perceber a operação casada. A quase simultaneidade, é preciso entender, é para ser exibida, não escondida. Nogueira está a dizer: "Isso é poder". Na mesma quarta, ele assinava um artigo na Folha intitulado "A polarização é Lula versus o bom senso". Estamos falando de disputa eleitoral.

Ainda ontem, Motta compareceu ao lançamento de uma nova federação partidária, a unir o Solidariedade e o PRD, que se declara na oposição. Discursou:
"Essa federação vem para engrandecer o debate nacional, para que possamos enfrentar com sensatez os problemas do país. Essa federação já nasce muito forte. Precisamos discutir o que queremos para o país, já vislumbrando as eleições do ano que vem".

A conversa, vocês sabem, é conhecida: o Brasil não aguentaria mais a suposta elevação de impostos, e o governo precisa cortar gastos, conversa que é muito bem-vista em setores da imprensa que, hoje em dia, lembram muito mais algumas práticas que antecederam o golpe de 1964 do que o alinhamento em defesa da democracia do período da abertura política. Há uma firme disposição de impedir o governo de governar.

Não se trata — não ainda ao menos (enquanto julgarem que está nas cordas) — de derrubar Lula, mas de inviabilizar a sua reeleição. Até as pedras sabem que o sucessor em certos nichos já foi "eleito". Quem atrapalha hoje a ascensão de Tarcísio de Freitas como o consenso dos que se alinham contra o governo é Jair Bolsonaro. Quer evitar uma outra sucessão: a que se daria no território da própria direita. Por mais que o governador de São Paulo lhe seja fiel, não quer se tornar um subordinado que depende da boa-vontade daquele que julga ser a sua criatura — daí que Eduardo Bolsonaro chame o titular dos Bandeirantes de "direita permitida". Voltemos.

O fato é que Motta se sentiu à vontade para pautar o PDL de modo a não dar ao governo nem mesmo a chance de reação ou de alguma articulação. Dizem que Arthur Lira (PP-AL) é a mão que balança o berço do atual presidente da Câmara... É evidente que são aliados. Mas ouçam qualquer um na própria Câmara, e a avaliação será uma só: isso, o antecessor nunca fez. O governo ficou atônito. Nem poderia ser diferente. Para ficar nas referências históricas, o comportamento remeteu mais ao ex-deputado Eduardo Cunha do que a Lira.

E ficou claro já nas primeiras horas do dia que não se deveria esperar algum freio de Davi Alcolumbre (União-AP), presidente do Senado. A Câmara aprovou o PDL por 383 votos a 98, um resultado acachapante. No Senado, o troço passou por votação simbólica. Não custa lembrar: essa versão do decreto do IOF foi costurada pelo governo em conversa com a cúpula do Congresso, e o próprio Motta chegou a falar de um entendimento "histórico", porque os dois Poderes também buscariam reduzir as despesas tributárias etc e tal. A conversa desandou menos de 24 horas depois. E se viu o que se viu.

Lula participou ontem da reunião Extraordinária do Conselho Nacional de Política Energética, em Brasília. Sabedor de que o PDL seria aprovado, discursou:
"Vocês sabem a seriedade com que o Haddad trata a economia. Vocês sabem que nós estamos há quase três anos tentando consertar a economia. Primeiro foi a PEC da Transição. Depois foi o arcabouço fiscal. Nós tivemos a coragem de dizer que, por mais que a gente arrecadasse, a gente não poderia gastar mais do que 2,5%. Vocês estão lembrados disso. E depois a reforma tributária, uma coisa feita a 513 mãos na Câmara e a 81 mãos no Senado. Não é o que nenhum de vocês queria nem o que eu queria. Foi o possível".

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Em outro momento, Lula voltou a falar sobre caminhar pelo centro, insistindo naquilo que Fernando Henrique Cardoso chamava de "política como arte do possível", para certo desprezo de algumas correntes de esquerda. Daqui a alguns dias, o governo vai anunciar o novo Plano Safra, que baterá um novo recorde. E, no entanto, o presidente não consegue visitar em segurança uma feira do agro. Releiam a fala de Lula: há um certo tom ressentido — ressentimento justo, diga-se.

Não haverá o reconhecimento. No artigo que assina na Folha, Ciro Nogueira escreveu:
"Depois de ter prometido fazer o melhor de seus três governos --fora as duas experiências de Dilma, de triste memória--, o presidente Lula ameaça o Brasil com uma nova candidatura.
Não bastasse o aumento do preço dos alimentos, a obsessão por taxar, taxar, taxar, o assalto aos aposentados, o completo descaso com a violência que só aumenta em todo o país, o presidente se isola da realidade e não consegue ver que só há uma palavra para definir sua volta ao poder: decepção."
(...)
Lula certa vez disse que era uma ideia. É sim, mas uma ideia ultrapassada. E o Brasil e as brasileiras e os brasileiros precisam desesperadamente avançar, conquistar sua dignidade com novos empregos, com um governo que trabalhe para as pessoas e não com as pessoas trabalhando cada vez mais para um governo que gasta demais, taxa demais e entrega pouco. E nada novo."

Permito-me reproduzir trecho de um artigo de Pedro Cafardo publicado no dia 10 no jornal Valor Econômico, que precisa ser lido na íntegra:
"Nesse país infeliz, a inflação está abaixo da média nacional dos últimos 30 anos; a renda dos mais pobres cresce mais que a inflação de alimentos, principal item de consumo nessa faixa de rendimento; o nível de desemprego é o mais baixo da história; o número de pessoas em situação de fome caiu 85% em um ano; a desigualdade de renda é a mais baixa da história, e a renda per capita, a mais alta; o crescimento da produção surpreende positivamente há cinco anos; a safra de alimentos bate recorde; o lucro das empresas financeiras e não financeiras aumenta muito mais que a inflação; a bolsa de valores quebra recordes e rentistas/investidores das classes ampliam seus patrimônios com os juros de dois dígitos."

Minha pergunta é apenas retórica: o tom da cobertura do jornalismo econômico está mais para o artigo de Ciro Nogueira, pré-candidato a vice na chapa do pré-candidato Tarcísio se Freitas (se Bolsonaro não criar obstáculos) ou mais para as verdades irrespondíveis do artigo de Cafardo?

VOLTANDO AO COMEÇO
Nesta mesma quarta, dia da barbárie do PDL, o Senado aprovou matéria que já havia passado pela Câmara elevando de 513 para 531 o número de deputados. Vai para a sanção de Lula. O que ele pode fazer? Vetos absolutamente sensatos do presidente, como o despropósito dos jabutis da área de energia, foram derrubados pelos patriotas de um Poder que hoje demonstra tentações não de autonomia, mas de soberania. Como a Constituição pode ser um limite ao vale-tudo e como o seu intérprete final é o Supremo, a disposição retaliatória contra o tribunal é evidente, juntando os discípulos do bolsonarismo com os do "emendismo" -- havendo, claro, os que se entregam às duas seitas macabras.

Há aqui e ali a ilusão de que um novo presidente pode recolocar as coisas no eixo. É mesmo? Nós já conhecemos o resultado do alinhamento de um Executivo reacionário com um Congresso idem. Assistiu-se ao casamento do calote com o Orçamento Secreto, enquanto o golpista se dedicava a destroçar, impune, as instituições. E a resposta, ora vejam, teve de vir do Supremo, o mesmo que promove, amanhã, uma audiência pública para debater as emendas impositivas. A propósito: o ministro Flávio Dino ousou, também nesse caso, aplicar a Constituição, o que se considera uma grande ofensa e uma interferência indevida do Judiciário no Legislativo...

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Volto à fala de Lula que transcrevo acima. A sua disposição, como se nota, é de conciliação, recusada ontem com estardalhaço. Ao presidente, resta o caminho da luta política. E luta das mais duras. Ele já deve ter notado que há um esforço para decidir o resultado da eleição bem antes do pleito. Até Bolsonaro percebeu isso. O "Mito" só reage negativamente porque tenta não ser um sócio menor do arranjo, aquilo que Fernando Pessoa chamava de "cão tolerado pela gerência".

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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