Tudo para o Mito, nada contra o Mito, nada fora do Mito. Ah, serve Tarcísio

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Já escrevi e falei dezenas de vezes, talvez o número passe da centena: Jair Bolsonaro nunca escondeu o que pretende. Sei que essa, digamos, lealdade ao próprio pensamento pode até se confundir com honestidade em certos nichos. Falso. Suas pretensões políticas são fundadas em mentiras grotescas. Vamos ver.
No evento micado na Avenida Paulista, neste domingo, ele não escondeu a intenção de montar um estado paralelo para atropelar as instituições. Leiam o que afirmou:
"Se vocês me derem, por ocasião das eleições do ano que vem, 50% da Câmara e 50% do Senado, eu mudo o destino do Brasil. Tarcísio, quando eu falo isso, tem outros 50% para o Republicanos, para o PSD, pro PP, MDB, União Brasil... Se vocês me derem isso, não interessa onde eu esteja, aqui ou no além, quem assumir a liderança vai mandar mais do que o presidente da República. Com essa maioria, nós elegeremos o nosso presidente da Câmara, o nosso presidente do Senado, o nosso presidente do Congresso Nacional, a maioria das comissões de peso no Senado e na Câmara. Lá no Senado, nas sabatinas, nós decidiremos quem prosseguirá nessa missão ou não. Nós indicaremos os integrantes das agências, nós escolheremos, e não o presidente [da República], o presidente do Banco Central e todo o seu secretariado. Nós seremos os responsáveis pelo destino do Brasil. Então o recado: não quero isso para perseguir quem quer que seja; não quero isso para revanchismo; eu quero isso pelo futuro do meu Brasil. E digo mais: nem eu preciso ser presidente. O Valdemar [Costa Neto] me mantendo como presidente de honra do Partido Liberal, nós faremos isso por vocês".
O que lhes parece? Algo na fala de Bolsonaro remete, ainda que longinquamente, a um regime democrático? Observem que os 50% que pede para ele próprio — "se vocês me derem" — se complementa, e ele evoca Tarcísio de Freitas, com outros 50% que seriam compostos por Republicanos, PSD, MDB, União Brasil... É certo que vocês fizeram as contas: a sua pretensão, então, é ter 100%.
É claro que todo insano político tem o direito de sonhar, não é mesmo? O troço é certamente amalucado, mas não é uma maluquice que ele vive sozinho. Os que estão sobre o palanque endossando a sua fala — e alguns lhe ficam soprando nomes de legendas — também aspiram, na condição de aliados, a esse poder total, de que não escaparia nem mesmo o Banco Central, que hoje é autônomo.
Insista-se: ele não esconde o seu projeto de usar as eleições — enquanto elas existirem... — para aparelhar o Estado brasileiro. Com todas as letras: "E digo mais: nem eu preciso ser presidente. O Valdemar me mantendo como presidente de honra do Partido Liberal, nós faremos isso por vocês".
Alguém poderia objetar: "Ele já foi presidente, e isso não aconteceu... " Não desse modo. Mas foi na sua gestão que o país passou a ser governado pelo Orçamento Secreto. Foi a impunidade que lhe garantia o Congresso alimentado a emendas que lhe permitiu cometer, no exercício da poder, crimes de responsabilidade em penca, na certeza de que jamais seria ameaçado pelo impeachment. Foi a onipotência conferida por um Parlamento omisso e com as burras cheias, que o levou ao desassombro de reunir o governo para dar um jeito de impedir a realização das eleições em 2022. Não conseguiu, como sabemos, mas tentou. E conhecemos as consequências.
Tarcísio estava no palanque, a ouvir tudo. Já que a direita o vê como o melhor nome para enfrentar Lula, isso só pode significar — ou me digam por que não seria assim — que concorda com esses postulados e que esse projeto é seu também.
Sabendo que seu chefe político não será candidato, fazendo campanha eleitoreira desbragada, o governador falou sobre a dita "missão" do homem que esboçou o roteiro de uma "ditadura pelas urnas". Então perorou:
"Quero dizer pra vocês que a missão do Capitão não acabou. Essa missão não acabou. Ele ainda vai contribuir muito com o Brasil. Ele ainda vai fazer a diferença porque, se está tudo caro [a plateia repetia: 'Volta, Bolsonaro'; duas vezes]. E eu tenho a certeza de que nós vamos vencer. Alguma pessoa me disse assim: 'Está muito difícil'. E eu disse: 'Esse tempo vai passar; a esperança vai voltar; a prosperidade vai voltar. E ela vai voltar porque nós vamos estar juntos. Porque esse grupo está unido; porque os corações estão amarrados; porque a gente quer o melhor para o Brasil. Esse homem trouxe essa corrente, o verde-amarelo; esse homem pensou nas pessoas; esse homem pensou nos mais humildes; esse homem fez a diferença; esse homem é honesto; honesto de propósitos. Quer o Brasil grande; quer o Brasil da família; o Brasil de Deus; o Brasil da liberdade. Deus, pátria, família e Liberdade! E ninguém vai tirar isso de nós".
Faz as honras de um projeto, esboçado pelo próprio ex-presidente, que ambiciona o poder total, ao arrepio até do resultado da eleição presidencial.
E Tarcísio não se faz de rogado: "a missão não acabou". Se notarem bem o tom de sua fala, o "capitão" entra como inspiração, sim, mas também como o passado. É ele próprio quem se coloca como o continuador da obra e de uma pretensão que foi revelada sem pudor: "Tudo para Bolsonaro, nada contra Bolsonaro, nada fora de Bolsonaro".
É uma adaptação à moda da casa do lema fascista criado pelo filósofo italiano Giovanni Gentile: "Tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado". Orna! A tríade "Deus, Pátria, Família" da fala do governador era a palavra de ordem dos integralistas no Brasil. Os valentes de agora acrescentaram "liberdade" apenas como um grito de guerra contra os limites que as instituições podem impor a facistoides.
Tarcísio diz o que que pretende, convenham. Só não vale dizer, a depender do que nos reserve o futuro, que ele não tinha avisado.
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