No Ano-Novo, o verde renasce na São Paulo bruta e desigual

É uma cidade verde, pensei ao regressar a São Paulo depois de uma breve temporada em Lyon, França, 9 anos atrás. Era quase outra era geológica e tudo é questão de ponto de vista: é injusto comparar o inverno de árvores decíduas do hemisfério Norte com a exuberância tropical de nossa estação de chuvas.
Voltei a pensar o mesmo neste fim de ano, agora numa comparação de São Paulo com ela própria. Em 2024, vivemos dias tenebrosos, de clima desértico e imundo, ostentando o título de cidade mais poluída do mundo por 5 dias em setembro. A menção à expressão "onda de calor" provocava calafrios, e por aqui o fenômeno extremo bateu ponto todos os meses do ano. Como diz Vera Iaconelli, o ano que termina foi duro para todos que assumem que a vida é uma experiência coletiva.
Eis por que os últimos dias de dezembro são vivenciados como um oásis. Temperaturas amenas para a época, agradáveis até, e chuva. Quase um convite ao negacionismo climático. Meu quintal é maior do que o mundo, diz o poeta, e por aqui, nas colinas da zona oeste paulistana, o verde voltou.
Já escrevi sobre a avenida Sumaré em outra oportunidade. Há traços nela que resumem São Paulo, e assim é com sua natureza, teimosa e elitista. Elitista porque restrita aos cantões ricos da cidade —uma rápida viagem pelo corredor leste-oeste, sentido ZL, revela o sumiço das árvores a partir do viaduto do Glicério, talvez um dos lugares mais horrorosos já produzidos pela mão humana.
Teimosa porque São Paulo tem feito de tudo para, em nome da circulação de carros, tirar o verde circulação. A motosserra da vez é a vegetação na avenida Sena Madureira, protegida precariamente por decisão judicial contra um túnel para facilitar o trânsito. Ao menos por ora, não parece ser o caso da Sumaré, sob cujas faixas de rolagem jaz o leito entubado e apodrecido do que um dia foi um córrego.
A voracidade imobiliária tem destruído nascentes cujas águas até pouco tempo jorravam de muros de contenção. Sob o viaduto da avenida Doutor Arnaldo havia um pequeno lago com uma placa artesanal, sinalizando a presença de peixes e um empoçamento livre de dengue. O lago às vezes está lá, às vezes, não. Os peixes se foram, a plaquinha foi destruída, arrancada ou se acabou. Como quase tudo nesta cidade difícil de amar.
Talvez seja o caso de buscar um ponto superior —literalmente. Do alto do viaduto se tem a mais bela visão do vale. A vegetação profusa e colorida parece harmonizar com algumas poucas residências, faixas de asfalto não muito agressivas, uma ciclovia ajeitada e o platô envidraçado da estação do metrô. Ao fundo, o skyline é uma moldura quase irreal.
Mas é como São Paulo vista da janela do avião. Ao rés do chão, as ilusões se dissipam e às vezes é preciso um olhar estrangeiro para desnaturalizar o que já virou paisagem. Na visita inaugural à metrópole, a amiga alemã se espanta com o hábito diário de milhares de pessoas se exercitando, sob o tempero do monóxido de carbono, na pequena faixa arborizada entre as duas pistas da avenida.
Na segunda passagem, a amiga aderiu ao cooper e acho que até viu beleza, aquele tipo de beleza à paulistana que a Sumaré nos entrega. Descuidada, em que a grama alta faz divisa com tufos de terra nua. Improvisada, na ausência de projeto paisagístico. Suja, por observáveis ao alcance de qualquer pedestre. E resistente, como a da seringueira quase centenária em um dos limites da avenida, a praça Marrey Junior.

Dezembro veio e o verde renasceu. Nas margens das pistas crescem uma estação de metrô e prédios altos que ninguém consegue comprar. No canteiro central, na parte baixa da avenida, uma sequência de impressionantes seringueiras destroem o cimento da ciclovia, seu jeito de dizer ainda estamos aqui. No recanto de um dos frondosos troncos, um velho cobertor faz as vezes de porta na casa-árvore em que pelo menos duas pessoas vão ver o Ano-Novo começar.
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