Com poucas matrículas, ensino técnico esbarra em 'cultura de bacharéis'
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Com somente 11% de seu alunado entre 15 e 19 anos matriculado no ensino técnico profissionalizante, o Brasil caminha a passos lentos em sua trajetória para criar alternativas de formação aos jovens e, ao mesmo tempo, fortalecer setores estratégicos de sua indústria —um dos objetivos centrais dessa modalidade de ensino.
A que se deve esse baixo percentual, considerando a média de quase 37% dos países da OCDE, clube das nações mais ricas do mundo?
Para Ricardo Tonassi, presidente do Foncede (Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais e Distrital de Educação) e professor na UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), um dos fatores é a chamada "cultura do bacharelismo" —ou seja, o valor simbólico socialmente atribuído a um diploma universitário.
Segundo Tonassi, essa tendência contribui para o desemprego dos jovens ao afastá-los de carreiras alternativas ao ensino superior. Em entrevista à coluna, ele defende uma ideia polêmica: a inclusão do magistério do ensino médio no catálogo nacional de cursos técnicos. Ressalta, ainda, a necessidade de ressuscitar o prestígio dessa modalidade.
"São mais de 600 mil vagas necessitando de pessoas qualificadas. Mas nossa cultura do bacharelismo leva os estudantes a acreditarem que o mais importante é portar um anel no dedo e ser chamado de doutor", afirma.
O que é a "cultura do bacharelismo" e de que modo ela contribui para travar o desenvolvimento?
Ricardo Tonassi: Há uma tradição no Brasil, que remete à nossa colonização portuguesa, que leva as pessoas ao seguinte raciocínio: eu só serei respeitado socialmente se eu tiver um anel no dedo --o mais importante é ser um "doutor". No Brasil, certas profissões, como advogado, médico, entre outras, são chamadas assim como forma de distinção. Nossa cultura leva as classes menos abastadas a entenderem que esse "doutor" é quem manda, é quem tem dinheiro. A consequência disso é que se dá uma competição extremamente desigual entre jovens que fazem uma refeição por dia, que gastam horas no transporte público para ir e voltar, diante de muitos outros que têm todas as refeições, tempo de sobra para estudar e boas condições financeiras.
Você fala numa diferença de prestígio entre o bacharel e o técnico?
Enquanto sustentarmos essa cultura do bacharelismo, continuaremos a enxergar o ensino técnico como um "gueto" dos mais pobres, o que é uma mentira. O ensino técnico, muitas vezes, é a boia que permite ter uma renda para sustentar sua família. Vimos um exemplo disso na pandemia: um técnico de enfermagem dificilmente ficou desempregado. O mesmo acontece na área de segurança do trabalho ou em transações imobiliárias —há espaço no mercado para essas pessoas.
Nos países da OCDE, quase metade dos estudantes de ensino médio estão na modalidade técnica, enquanto no Brasil essa média é de 11%.
Pois é. Esses países sabem que precisam de trabalhadores qualificados para a industrialização. Se pegarmos a Alemanha, por exemplo, há uma bifurcação no ciclo do ensino básico em que se separam os estudantes que têm boas notas e querem ir à universidade daqueles que querem ir ao ensino técnico.
A mesma Alemanha é um dos maiores exportadores de café do mundo, sem produzir um pé, pois possui a maior rede ferroviária da Europa. Então, eles compram e transformam uma cápsula em sacas de café para exportação, um procedimento puramente tecnológico. Já no Brasil, nossas maiores commodities continuam a ser soja e gado, o que atende a uma parcela diminuta que ganha muito dinheiro com a alta do dólar, enquanto quem compra cesta básica vive uma tragédia.
Como mudar esse cenário?
O orçamento da educação precisa dedicar mais recursos ao ensino técnico, tomando cuidado para não reproduzir maus exemplos, como a educação a distância (EAD) do ensino superior, que é um ensino mais barato, porém de baixa qualidade. Na outra ponta, precisamos informar os nossos jovens de que eles têm opções. Não se trata de obrigá-los, mas é um pecado não mostrar alternativas. Atualmente, um mergulhador, técnico em soldagem, ganha cerca de R$ 20 mil numa plataforma de petróleo no Rio de Janeiro, enquanto um advogado de uma empresa de telecomunicações ganha R$ 3.000 —mas ele tem um "anel" de doutor e anda de terno. Isso não faz sentido. Se olhamos para os professores, por exemplo, eles não escolhem mais sua profissão —em vez disso, acabam sendo "escolhidos" por não terem nota no Enem para outra coisa. No futuro, parcela desses jovens se tornará um burocrata da educação, cumprindo tabela para a aposentadoria.
Como você vê a formação de professores nesse contexto? Você defende o magistério do ensino médio como alternativa a alguns cursos de licenciatura.
A LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] prevê, como formação mínima do professor, a educação superior. Trata-se de uma lei escandinava para um país subdesenvolvido. Se são 5.600 municípios no Brasil, como aplicar essa lei? Começamos a aceitar, passivamente, uma EAD de R$ 49 em pedagogia, na modalidade licenciatura, com turmas de 5.000 alunos para um professor. Isso resulta de um contexto econômico: grandes grupos educacionais vão à Bolsa para garantir o seu próprio lucro, o que nos leva ao atual cenário, em que vemos um alto número de pedidos de fechamento de faculdades no país.
E como entra o magistério do ensino médio nesse cenário?
Infelizmente, o MEC ainda não colocou o magistério do ensino médio no catálogo nacional de cursos técnicos, algo pelo qual venho lutando há muito tempo. Quem é professor e passou pelo ensino médio sabe que é lá que se aprende a dar aula.
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