Rodrigo Ratier

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Opinião

Como é participar da comissão de cotas raciais da USP

Durou quase seis meses, está acabando nesta semana e eu estive lá dentro. De técnicos em informática a docentes, de estudantes a integrantes do movimento negro, cerca de uma centena de pessoas trabalhou nas chamadas comissões de heteroidentificação da USP, grupos criados para evitar fraudes nas políticas afirmativas de acesso às vagas da universidade.

A USP hoje é uma universidade muito diferente daquela em que me formei jornalista, em 2001. Está mais diversa socioeconômica e racialmente, fruto da mudança nas formas de acesso, uma transformação que começou em 2017.

Desde aquele ano, definiu-se que 50% das vagas da universidade seriam destinadas a alunos de escolas públicas. E que, desse percentual, haveria uma subcota, de 37% dos 50%, destinada a candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI). É o equivalente ao percentual de PPIs no estado de São Paulo.

Graças às cotas, o percentual de pretos e pardos na graduação da USP saltou de 9% em 2005 para 23% em 2022.

Até 2022, bastavam as autodeclarações dos candidatos para acessar as cotas étnico-raciais. Apontavam-se falsificações, que geravam centenas de denúncias e, em alguns casos, o desligamento de alunos mesmo às portas da formatura.

Pressão social contra as fraudes

As comissões de heteroidentificação nascem por essa pressão contra as fraudes. Elas são formadas por professores, alunos, servidores e membros da sociedade civil para avaliar as autodeclarações dos candidatos às cotas raciais. Os critérios de composição incluem maioria de integrantes negros, diversidade de gênero e preferência por pessoas com experiência no tema da igualdade racial.

O STF (Supremo Tribunal Federal) se pronunciou a favor das comissões de heteroidentificação em uma decisão de 2018. À época, o então relator, ministro Luís Roberto Barroso, mencionou a "grande dificuldade" de se instituir "um método de definição dos beneficiários da política [de cotas] e de identificação dos casos de declaração falsa".

Na condição de professor da USP, participei de uma das comissões de heteroidentificação do vestibular 2025.

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O processo começa com um trabalho de letramento racial, realizado pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento. Somos informados de que devemos identificar, por meio de fotos dos candidatos, critérios fenotípicos associados à negritude no Brasil.

A análise fenotípica consiste em avaliar o conjunto das características visíveis de quem se declara negro: formato do rosto, nariz, lábios, tom de pele, cabelos etc. Não há aferição de DNA, de ancestralidade ou de contexto social do candidato. Ou seja, avalia-se uma parte dos elementos que constituem a pessoa negra. A justificativa é que o preconceito racial, na sociedade brasileira, está diretamente associado às características físicas.

A ideia é respeitar o critério fundamental das políticas de cotas: a reparação histórica para grupos que possam sofrer, em seu cotidiano, violências, abusos e discriminações decorrentes do racismo.

Para cada integrante, milhares de fotos

É um trabalho exigente. Ao longo do processo, cada integrante das comissões terá analisado entre 4.000 e 5.000 fotografias de candidatos às cotas. O período mais intenso ocorre no final de novembro, quando a Fuvest divulga a lista de aprovados para a segunda fase.

Para dar celeridade ao processo, todos os convocados —mesmo os que não conseguirão passar na segunda etapa de provas— têm suas fotos examinadas. Em 2024, foram três dias de trabalho seguidos, com mais de 3.000 análises por comissão.

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Há ainda duas outras formas de acesso às vagas de graduação na USP: a nota do Enem e o Provão Paulista, uma avaliação seriada aplicada anualmente a estudantes do ensino médio da rede pública de São Paulo. No caso dessas duas modalidades, a avaliação é feita assim que ocorre a pré-matrícula no curso, entre janeiro e abril.

Os casos mais evidentes, em que as pessoas são claramente brancas ou pretas, são simples de decidir. Os casos de pessoas autodeclaradas pardas — que o ministro Barroso classificou como "zona cinzenta" para a aplicação da política de cotas — exigem cautela. A instrução é que, quando houver dúvida sobre o fenótipo, deve-se respeitar a autodeclaração.

O voto de cada integrante é secreto e registrado em um sistema da universidade. Diante de cada foto, o membro da comissão escolhe entre duas opções: "apto" ou "inconclusivo". Cada comissão tem cinco integrantes, e vale a maioria simples: se o candidato tiver três ou mais votos de "apto", ele pode se matricular. Se tiver menos, vai automaticamente para outra comissão, onde o processo se repete: três ou mais votos "apto", matrícula liberada. Menos que três, o candidato é chamado para uma oitiva virtual.

A oitiva virtual é uma chamada em vídeo em que o vestibulando lê sua autodeclaração para a comissão. É uma etapa importante para tirar dúvidas, porque, às vezes, questões como iluminação, definição da imagem ou maquiagem podem trazer imprecisão à análise. Depois da oitiva, ocorre uma nova votação — agora, os integrantes da banca escolhem entre "apto" ou "inapto".

Avaliação por quatro comissões

Não acaba aí. Candidatos com o pedido indeferido podem acionar uma terceira comissão, a recursal, formada também por cinco integrantes. Essa comissão analisa os recursos, que, a seguir, vão para uma votação no Conselho de Inclusão e Pertencimento, que pode manter ou reverter o resultado da recursal.

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Ou seja, para ter a matrícula negada, o candidato precisa ter seu pedido negado em cinco etapas. Pode, por fim, judicializar o processo, se achar que é o caso.

Os estudantes barrados têm sido ampla minoria. Em 2024, 12% tiveram a matrícula negada — 9,8% foram declarados não habilitados e 2,2% não compareceram à oitiva virtual. Em 2025, números em queda: 3% de matrículas negadas — 2,3% não habilitados e 0,7% não compareceram.

Da minha experiência pessoal como membro de comissão, essa multiplicidade de etapas, somada ao voto secreto, reduz o grau de subjetividade e inibe a ideia de que estamos diante de um "tribunal racial" — a melhor definição, a meu ver, é que se trata de um grupo que, baseado em critérios específicos, assessora a aplicação de uma política complexa. Ao fim do trabalho, entendi que a heteroidentificação racial é um processo difícil, mas necessário.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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