Rodrigo Ratier

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Reportagem

Plano de Educação do MEC não recupera tempo perdido, diz especialista

Considerado uma espécie de guia para as políticas públicas na área de Educação, o Plano Nacional de Educação (PNE) tem vigência de 10 anos — e a última versão expirou no fim do ano passado, deixando um legado de metas não atingidas.

Um novo plano para o período subsequente se encontra em debate no Congresso e as discussões prometem ser acaloradas. O Projeto de Lei (PL) em discussão foi gestado pelo Ministério da Educação (MEC). A proposta era incorporar as deliberações da Conferência Nacional da Educação (Conae), mas os movimentos sociais dizem que isso não ocorreu plenamente.

O PL do MEC traz avanços importantes em igualdade e equidade, mas pouca incidência em aspectos contemporâneos como "crise climática o aprofundamento dos conflitos políticos e a queda das democracias e de seus valores", além de não recuperar o tempo perdido com as metas não cumpridas do plano atual. A análise é da cientista política Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, rede que articula centenas de grupos e entidades distribuídas por todo o país. Entre as organizações da sociedade civil, a Campanha é hoje considerada uma das organizações mais relevantes na discussão e acompanhamento de políticas públicas de educação.

Para Andressa, o texto atual é insuficiente para duas demandas fundamentais: a primeira, atacar a crise do Ensino Médio; a segunda, finalmente erradicar o analfabetismo. A cientista política afirma, ainda, que a tramitação do novo PNE no Congresso corre o risco de ser acelerada e gerar retrocessos.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista concedida à coluna por e-mail.

O levantamento da Campanha aponta que 90% das metas do PNE em vigência não foram cumpridas, sendo que 13% apresentaram retrocesso. Quais fatores ajudam a explicar tamanho descompasso entre expectativa e realidade?

Andressa Pellanda O descompasso entre o plano e a realidade no PNE vigente, com 90% das metas não cumpridas e 13% em retrocesso, se explica por uma combinação de fatores estruturais. A falta de articulação entre as políticas educacionais e os planos de desenvolvimento econômico e social é um dos principais problemas, pois um PNE ambicioso não se concretiza sem orçamento adequado e integração com outras áreas. Entre 2014 e 2024 tivemos, ainda um período marcado por austeridade e instabilidade política.

Além disso, a ausência de um sistema robusto de cooperação federativa, como o Sistema Nacional de Educação, e de avaliação institucional, como o Sinaeb, que foi debatido mas não implementado, dificultaram a articulação federativa, a corresponsabilização, o monitoramento e a correção de rumos. Outro ponto crítico foi a priorização de políticas na contramão do plano, como militarização de escolas [no governo de Jair Bolsonaro], e de uma visão restrita à aprendizagem nas políticas colocadas em prática no período, como a BNCC [Base Nacional Comum Curricular] e a reforma do Ensino Médio.

O que faltou priorizar?

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Não foram consideradas dimensões mais amplas, como infraestrutura, formação e valorização docente e condições socioeconômicas dos estudantes, que impactam diretamente o cumprimento das metas. Por fim, tivemos falta substancial de articulação entre os planos e leis orçamentárias e planos plurianuais em todas as esferas federativas, o que impediu a priorização dos planos e o avanço progressivo e combinado das várias políticas educacionais pelo país.

A Campanha diz que o PL apresentado pelo MEC avança em aspectos ligados à igualdade e à equidade. Poderia mencionar alguns dos destaques quanto a esses pontos?

O PL do MEC traz avanços importantes em igualdade e equidade, especialmente ao incorporar uma perspectiva transversal desses temas nas metas, ainda que em muitos casos falte especificidade. Assim, nos objetivos da educação básica ao ensino superior vemos propostas universalizantes de acesso e permanência, por exemplo, mas também metas específicas para os grupos que necessitam de maior focalização e inclusão.

Quais as principais diferenças entre o texto do governo e o da Conae?

As diferenças entre o texto do governo e o da Conae são significativas. A Conae propõe uma abordagem mais ousada, com metas no sentido de recuperar o tempo de descumprimento deste Plano atual. Traz também uma perspectiva de avaliação mais estrutural da educação e a vinculação mais sólida com a articulação intersetorial com áreas como cultura, meio ambiente e trabalho.

Já o PL do MEC é mais tímido, omisso em temas cruciais como justiça climática, gênero, migração e refúgio, além de não recuperar suficientemente em termos de alcance e prazos as metas não cumpridas do PNE anterior. A Conae também enfatiza a educação popular e direitos humanos de forma mais central, enquanto o governo prioriza uma visão mais técnica e menos vinculada a políticas sociais amplas.

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Quais são as maiores diferenças entre as duas propostas?

Há dois pontos que estão muito díspares. O primeiro é a Educação Profissional e Tecnológica (EPT), em que o novo PL prioriza demasiadamente o setor privado, quase que em detrimento do setor público. O outro é o financiamento, que na proposta do MEC está focado na educação básica, retirando a explicitação da necessidade de financiamento para a educação superior. É uma lacuna gravíssima não somente em termos de risco de desfinanciamento deste nível de ensino, como também porque a educação básica depende estruturalmente da educação superior.

A proposta leva em conta uma recuperação das metas que não foram cumpridas? Em algum sentido, os PNEs acabam sendo repetição dos anteriores por conta da sequência de não cumprimento?

Infelizmente, a proposta atual não prevê a recuperação das metas não alcançadas no PNE 2014-2024, o que é preocupante, pois perpetua um ciclo de descumprimento. Sem mecanismos de correção com aceleração de prazos e alcance mais firme, e sem mecanismos mais fortes de articulação entre as esferas federativas e, portanto, entre os planos nacional e subnacionais, e sem mecanismos robustos de controle interno e externo, o novo Plano tem tendência a patinar novamente. Isso precisará melhorar, e muito, na tramitação do texto no Congresso.

A manutenção da menção de 10% do PIB como investimento é mesmo para se comemorar, uma vez que o patamar sempre esteve distante de ser atingido?

A previsão no texto inicial do PL é uma vitória simbólica, fruto de anos de luta da sociedade civil, pois estabelece um patamar mínimo de compromisso que governos anteriores não queriam assumir e que, agora, já passam a aceitar. No entanto, celebrar apenas a menção no papel é insuficiente, já que esse percentual nunca foi efetivamente alcançado no PNE anterior. O desafio agora é garantir que esse investimento saia da retórica e se materialize em fontes de financiamento estáveis e vinculadas a políticas concretas, como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ). Sem isso, corremos o risco de repetir a frustração do último decênio, em que a meta ficou apenas no plano das intenções. A verdadeira comemoração só virá quando virmos os recursos chegarem às escolas, aos salários docentes e à infraestrutura educacional.

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Quais são as principais emendas ao PNE que a Campanha está propondo?

A Campanha está propondo emendas para fortalecer o novo PNE, considerando que o mundo vive um momento de múltiplas crises sobrepostas e que precisa de um novo paradigma. Não podemos ter um novo Plano que não tenha respostas e colaborações da via educacional para a crise climática, para o aprofundamento dos conflitos políticos e a queda das democracias e de seus valores, para a ascensão de populismos autoritários que discriminam e violentam grupos sociais, para cenários de desigualdades socioeconômicas perenes, entre outros desafios pelos quais passamos.

Nossas principais emendas giram em torno de garantir financiamento sólido e com mecanismos de implementação, avaliação e controle. Sem isso nada sai do papel, mas também um PNE que contribua para uma educação ambiental que esteja nos currículos mas na estrutura e nas práticas das instituições educacionais, da alimentação escolar aos insumos e ciclos de uso e reuso de materiais; para uma educação que vá além de estarem pautadas em avaliações em larga escala e que contribua para uma formação para o exercício da democracia e para trabalhos que sejam transformadores das sociedades, pautadas em um horizonte mais justo; para uma educação que inclua a todos e ensine sobre respeito e promoção às diferenças, sobre convivência escolar; para uma educação que forme pessoas preparadas para inovar e se adaptarem em cenários de rápidas transformações no mundo do trabalho; para uma educação que possa ser resiliente a emergências e que possa incluir não só brasileiros como outros povos, migrantes e refugiados. Também defendemos metas mais ousadas e prazos mais curtos para garantia de direitos básicos que se arrastam em descumprimento, dada a urgência educacional do país.

Pela temperatura da articulação do Congresso, quais podem ser as movimentações que mais ameacem essa concepção?

Quanto às movimentações no Congresso, as maiores ameaças são as pressões para reduzir o financiamento educacional ou esvaziar metas sob o argumento de "adequação fiscal". Há ainda o risco de retrocessos em temas como gênero e diversidade, que já foram invisibilizados no texto do governo e podem sofrer ainda mais resistência no Legislativo. E há uma tendência de utilizarem-se da falácia de que o Plano não tenha sido cumprido por ser denso ? o que as evidências refutam - para tentar reduzir as metas e enxugar o texto, o que pode impactar em redução de direitos e de mecanismos de "enforcement" [imposição do cumprimento à lei]. O cenário dependerá da mobilização da sociedade civil para evitar que o PNE seja aprovado de forma açodada e sem os avanços necessários ou, pior, com retrocessos camuflados.

O novo PNE pode trazer soluções para a crise do Ensino Médio?

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Pode contribuir se avançar em políticas de integração curricular, formação técnica integrada com a educação básica (o que ainda não está previsto no texto do PL e foi enfraquecido na reforma), valorização dos profissionais da educação e enfrentamento da evasão. Mas falta no PL uma abordagem mais estrutural para isso, tanto nos objetivos que tratam de ensino médio, reducionistas em entender qualidade como aprendizagem (esta é só uma dimensão da qualidade), tanto no que trata de educação profissional e técnica.

O novo PNE pode caminhar no sentido, finalmente, da erradicação do analfabetismo?

Há potencial se houver investimento em EJA e políticas de inclusão, mas o texto atual é insuficiente, pois não enfrenta as barreiras econômicas que afastam jovens e adultos da escola, como a integração mais sólida com a inclusão profissional e técnica e como a necessidade de flexibilização de turnos e currículos para garantia de melhor e maior inclusão. Ainda, a EJA precisa de uma política mais estrutural e de Estado, pois depende demasiadamente de indução de políticas de governo que, ao serem extintas, como ocorreu na última década, impactam em cheio a EJA.

Quais são os próximos passos em relação à tramitação do plano e sua aprovação? Qual o cenário de sua efetiva implementação?

Os próximos passos são a tramitação no Congresso, onde esperamos debates aprofundados e emendas que melhorem o texto, ainda que tal cenário seja difícil de ser concretizado pela ambiência de aceleração que se instalou. A implementação dependerá de vontade política e pressão social, pois sem fiscalização e participação popular, o risco de esvaziamento e retrocessos persiste.

Está no horizonte algum tipo de sanção pelo não cumprimento ao PNE? Essa ausência é uma fragilidade do Plano?

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A ausência de sanções é uma fragilidade histórica do PNE. Sem consequências para o não cumprimento, o plano acaba ficando marginalizado. Precisamos de mecanismos que responsabilizem governos e assegurem que as metas saiam do papel, mas isso precisa caminhar junto com mecanismos de cooperação federativa e financiamento adequado que dêem condições, especialmente para municípios, de os governos cumprirem com suas responsabilidades.

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