Rodrigo Ratier

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Opinião

Confusão por cotas trans expõe dificuldade da USP de debater a fundo o tema

Terminou pior do que começou o dia de paralisação em defesa das cotas trans na USP (Universidade de São Paulo). A manifestação, convocada para 8 de maio pelo movimento estudantil, teve adesão irregular e pouco avançou na pauta.

Ao contrário. Os protestos, que culminaram em confusão com estudantes num colegiado, evidenciaram a dificuldade de debater pautas ligadas à identidade.

Defensores das cotas trans na USP citam estudo do grupo de pesquisa e extensão Corpas Trans, que afirma que pessoas trans compõem apenas 0,15% do corpo discente de graduação.

A informação é controversa. A coluna teve acesso aos questionários do anuário estatístico da USP, aplicado a todos os estudantes. De acordo com esses dados, num universo de 60.194 graduandos, 2,33% se identificam como trans, travestis ou não binários.

É uma porcentagem superior à encontrada na população brasileira. Um artigo da revista Nature, frequentemente citado por militantes pró-cotas, estima que, no Brasil, a proporção de pessoas trans e não binárias (que possuem identidade de gênero neutra, ambigênera ou que transitam) seja de 1,86%.

Ao menos 14 instituições federais possuem reserva de vagas para pessoas trans. Em São Paulo, Unicamp, UFABC, Ufscar e Unifesp aderiram à proposta. USP e Unesp estariam "atrasadas" na tendência, segundo o movimento estudantil.

Agilidade não é mesmo o forte do ambiente universitário. Em fevereiro de 2023, o Conselho de Graduação afirmou que as políticas para a população LGBTQIA+ deveriam ser objeto de reflexão.

Mas um grupo de discussão sobre cotas trans só foi formalizado na semana passada, e no âmbito de outra pró-reitoria, a de Inclusão e Pertencimento (Prip). À Folha de S.Paulo, a Prip disse que "a formação do quadro envolveu indicações de diferentes instâncias da USP, o que demandou tempo".

É só o início do processo. Pela tramitação da USP, as sugestões precisam vir do Grupo de Trabalho da Prip, ser validadas nos conselhos de outras duas pró-reitorias (Graduação e Pós-Graduação) e, depois, no órgão decisório máximo da instituição, o Conselho Universitário. Um longo caminho que confere legitimidade à política, mas deixa as decisões muito mais demoradas.

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No início do ano, o movimento estudantil e coletivos trans apresentaram uma proposta de cotas para discussão.

A sugestão é reservar 2% das vagas, subtraídas da ampla concorrência. Metade seria destinada a estudantes de escolas públicas e a outra, para alunos em geral.

Esse é um ponto polêmico porque, nos casos de estudantes em geral, a reserva de vagas tenderia a beneficiar pessoas trans de escolas particulares, e não as mais vulneráveis.

A proposta cobra, ainda, uma "comissão de validação da autodeclaração", que faria uma entrevista com cada aprovado e avaliaria, "qualitativa e individualmente", um "memorial descritivo da trajetória de transição de gênero".

É outra complicação. Como a USP recebe cerca de 11 mil novos alunos por ano, o complexo processo sugerido teria de ser realizado, ao menos, 220 vezes por ano. Uma força-tarefa talvez superior à mobilizada para a verificação das cotas raciais.

Em 8 de maio, o movimento estudantil optou por uma rota alternativa à discussão.

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Na reunião do Conselho de Inclusão e Pertencimento, representantes discentes iniciaram uma gritaria para obstruir a pauta, que não incluía a votação de cotas trans.

Entende-se a pressa. O movimento estudantil é composto, sim, pela nova cara de uma USP pós-cotas raciais e de escola pública: mais diversa, menos privilegiada socioeconomicamente e justificadamente mais sedenta por fazer parte da vida universitária.

Mas a ação no conselho foi uma dupla impropriedade. Primeiro, porque inclusões de pauta precisam ser pedidas 30 dias antes e ter a adesão de metade dos conselheiros. Os estudantes falharam nessa empreitada.

Segundo, porque o conselho em questão não decide sobre formas de acesso à universidade. Isso cabe à Graduação e à Pós-graduação.

A confusão levou ao encerramento da reunião e à invasão, por algumas horas, de um setor administrativo por algumas dezenas de estudantes.

No dia seguinte, 37 dos 51 conselheiros docentes, representantes de diversas unidades da USP, assinaram uma manifestação de repúdio "à violência" na reunião e apoio "à institucionalidade do Conselho de Inclusão e Pertencimento da USP".

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A nota não questiona o mérito das cotas trans, mas a condução dos estudantes. Entre os signatários, há pesquisadores e militantes históricos das lutas LGBTQIA+.

Nuances que, para a surpresa de ninguém, foram solenemente ignoradas pelo tribunal da internet —no caso em tela, majoritariamente de esquerda. Nos comentários e em republicações no Instagram, os conselheiros foram classificados genericamente como "transfóbicos".

Pautado crescentemente pelo imediatismo das mídias sociais e por um ano eleitoral em diversas entidades representativas, o movimento estudantil da USP, hoje dominado por uma corrente do PSOL e pela juventude do partido Unidade Popular (UP) —em tese, a esquerda da esquerda—, tem recorrido à desinformação e cancelamentos.

Na reunião de março do mesmo conselho, a representação estudantil afirmou que iria divulgar nas redes o nome de todos os conselheiros que votassem a favor da criação de um auxílio financeiro para mães e pais estudantes.

A representação classificou o auxílio de R$ 850 como "armadilha" para retirar mães e filhos da moradia estudantil da USP.

E assim não caminha a universidade. De um lado, o temor do assassinato de reputações. De outro, uma institucionalidade muitas vezes burocrática. No meio, perdida, a chance de um debate profundo, pautado por boas evidências, acerca de uma questão importante para a sociedade. Que é justamente aquilo que a universidade deveria fazer.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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