Rogério Gentile

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Reportagem

Mulher vive 30 anos sendo xingada e forçada a trabalhar após sair de abrigo

A Justiça Federal condenou um casal de comerciantes de São Paulo por manter uma mulher em trabalhos forçados por cerca de 30 anos.

De outubro de 1991 a julho de 2022, de acordo com a denúncia feita pelo Ministério Público Federal, a vítima recebeu apenas um salário, tendo de cumprir uma jornada exaustiva e em condições análogas à escravidão na residência e na loja do casal.

Ela tinha de trabalhar das 7 às 22 horas, às vezes até a meia-noite, sendo que nunca pôde tirar férias.

Sofria violência física e verbal e uma vigilância ostensiva. Havia, sempre segundo a investigação, câmera até mesmo na porta do seu quarto.

De acordo com o processo, Maria Sidronia Chaves de Oliveira encontrou a vítima em um abrigo ligado à pastoral do migrante, na região do Glicério, no centro de São Pulo, trazendo-a para trabalhar em sua casa como doméstica. O combinado era que Manoela (o nome é fictício para preservar a sua identidade) receberia um salário-mínimo por mês, mas houve apenas o primeiro pagamento.

Após o segundo mês, os empregadores responsabilizaram Manoela pela quebra de uma máquina de lavar roupas, e nunca mais a remuneraram sob o argumento de que usariam o valor para cobrir o conserto.

Ofendida e agredida

O Ministério Público afirma ainda que Manoela era constantemente xingada por José Enildo Alves de Oliveira, o patrão, que utilizaria de termos como "filha da puta, "macaca", "nega do caralho", dentre outros palavrões. Maria Sidronia também, segundo a acusação, costumava filmar a vítima, ameaçando enviar os vídeos para suas amigas.

Teria havido ainda ao menos dois episódios de violência física, sendo que em um deles a vítima teria sido trancada na lavanderia pelos patrões e surrada com tapas. No outro, Maria Sidronia teria atirado uma cadeira em Manoela.

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Em 2022, a vítima, já idosa, aos 69 anos, foi resgatada após uma denúncia feita à Justiça pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social.

A Justiça Federal, em segunda instância, condenou o casal a uma pena de dois anos de reclusão em regime aberto, além de uma multa equivalente a um terço do salário-mínimo (tabela de 2022). A pena privativa de liberdade, no entanto, foi substituída pelo pagamento de dois salários-mínimos a uma entidade social (tabela de 2025) e à prestação de trabalhos comunitários por dois anos.

"Até a data do resgate, [a vítima] os acusados a submeteram ao trabalho doméstico sem remuneração, exercido exclusivamente em troca de alimentação e moradia, sem férias e folgas aos finais de semana, jornada exaustiva, terror psicológico, e agressões físicas e verbais, o que, sem dúvida, configura o crime de redução a condição análoga à de escravo", afirmou o desembargador André Nekatschalow, relator do processo no TRF.

"Embora a vítima pudesse sair à rua, isto é, não permanecesse em cativeiro, dada a sua condição socioeconômica tornou-se sujeita ao poder dos acusados", afirmou o desembargador, referindo-se ao fato de que Manoela dissera em depoimento ao Ministério Público que não tinha para onde ir nem dinheiro para arrumar algum lugar para morar.

Casal nega acusações

O casal já recorreu da decisão.

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Maria Sidronia e José Enildo afirmaram à Justiça que o caso se trata "de uma relação trabalhista que se transformou em amizade, companheirismo, amor e gratidão recíprocos".

Eles afirmaram no processo que Manoela trabalhou como babá dos seus filhos até o momento em que eles atingiram a adolescência, recebendo salários normalmente. Depois disso, afirmaram, ela já não exercia mais qualquer função de trabalho na residência, permanecendo ali por amizade.

Negaram que ela tenha sido submetida a trabalho análogo à escravidão. Afirmaram que ela tinha total liberdade de ir e vir, possuindo, inclusive, as chaves da casa.

Rejeitaram também as acusações de violência, dizendo que ao longo de mais de 20 anos de relacionamento houve apenas "dois ou três entreveros, pois até mesmo os casais mais amorosos têm discussões e atritos".

"Em nenhum momento nas relações trabalhista e depois, de amizade/companheirismo, havidos entre as partes, ocorreu submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas", afirmaram os comerciantes à Justiça;

Eles disseram que nunca cometeram qualquer ato criminoso e que nunca houve dolo em suas ações.

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Segundo eles, houve apenas "falhas administrativas e infrações e trabalhistas".

Além da ação criminal, o casal é alvo de um processo trabalhista no qual eles foram condenados em primeira instância a pagar uma indenização em valores estimados de R$ 800 mil (cálculos que dependem de uma perícia ainda).

O processo trabalhista também está em fase de recurso.

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