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Ronilso Pacheco

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como nasce o nacionalismo cristão - parte 1

Então AGU, André Luiz Mendonça, e o presidente Jair Bolsonaro - Dida Sampaio/Estadão Conteúdo
Então AGU, André Luiz Mendonça, e o presidente Jair Bolsonaro Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

05/12/2021 04h00Atualizada em 06/12/2021 11h39

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Na última quarta-feira (1º), o país acompanhou a tão esperada sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), no Senado, do ex- advogado-geral da União, André Mendonça, para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF).

A aprovação de Mendonça, depois de quase dez horas de sabatina, foi seguida por um intenso debate sobre, não apenas sobre sua qualificação para ocupar a posição, mas, principalmente, sobre o fato de ser ele, finalmente, o ministro "terrivelmente evangélico" indicado e esperado pelo presidente Bolsonaro.

Definitivamente, o Brasil corre riscos muito sérios. Mas sem leituras coerentes e sem pensamento crítico dinâmico sobre a realidade, sobretudo no que tange a relação religião e política, a democracia, igualdade, diversidade e liberdades individuais no país não vão sobreviver.

Se a esquerda partidária e ativistas progressistas (principalmente os não religiosos) seguirem com a "visão ortodoxa" de que os fundamentalistas estão organizados fazendo lavagem cerebral dos evangélicos, um movimento em direção ao nacionalismo cristão evangélico veio para ficar.

Isto é o que o livro da socióloga Lydia Bean, "The politics of evangelical identity" ajuda a compreender. Ali, ela aponta como tornou-se comum no meio da esquerda partidária e ativistas progressistas a ideia de que os pastores fundamentalistas sequestraram o cristianismo evangélico para para os partidos ultraconservadores e de extrema-direita.

Ela afirma que esta é uma imagem distorcida e limitada de como as igrejas evangélicas se tornaram politizadas e que esta politização está ancorada na vida de congregações locais e, principalmente, como elas estão abordando política, particularmente nas igrejas pentecostais.

Aqui, eu digo que este "como" da abordagem e compreensão do que é política nas congregações, principalmente as pentecostais - e não apenas as mais pobres e das periferias - ainda é perturbador e pouco compreendido pela esquerda e ativistas progressistas.

Mesmo com a popularização da expressão "precisamos conversar com os evangélicos", essa "conversa" ainda segue uma cartilha hierárquica, que envolve pouca disposição em aprender e mais em ensinar.

Essa falta de "jeito" em lidar com a questão tem atravessado todo o debate no Brasil, seja na grande mídia, seja na movimentada rede social progressista, sobre a os riscos para a laicidade do estado com a escolha de um ministro "terrivelmente evangélico" no STF.

Intencional ou não, grande parte destes setores deu a entender que o fato de Mendonça ser evangélico, pastor presbiteriano, por si só, feriria o princípio do estado laico. Passou-se a repetir tantas vezes o "terrivelmente" dito por Bolsonaro, que veio a ideia de que só o fato de ser evangélico já o tornava necessariamente incapacitado e indesejado para a vaga do STF. Obviamente, isto virou combustível no incêndio, e não água capaz de apagá-lo.

Entre jornalistas, colunistas e lideranças do campo da esquerda, foram raras as abordagens que se davam o trabalho de juntar as peças do quebra-cabeças do tabuleiro bolsonarista do poder. E que quebra-cabeças era esse? O governo Bolsonaro está tomado por nomes que são evangélicos primeiro e técnicos depois. É verdade que todos sabem disso. Mas também é verdade que não se explora isso.

A presença cristã, evangélica e católica, de orientação ultraconservadora no governo é incompatível com uma administração que precisa garantir para o todo da sociedade que há compromisso com a diversidade e representatividade na sua composição.

Era preciso nomear todos os pastores e pastoras que hoje integram o governo, as lideranças evangélicas que estão no primeiro, segundo e terceiro escalão. Assim, um ministro do STF igualmente evangélico e pastor ultrapassa os limites dessa demonstração de privilégio e superioridade.

Mas como não conseguiram sair do trivial, as críticas a Mendonça só renderam análises de que o Brasil estaria à beira de uma teocracia. Tal ideia não é apenas inviável neste momento, como tende a demonstrar mais uma preguiça de parte da imprensa e ativistas, que buscam as leituras mais fáceis e simplistas de serem feitas.

No entanto, a escolha de Mendonça, e todo estardalhaço após a sua confirmação, corrobora agora com segurança que o Brasil está lidando com uma forte organização de um nacionalismo cristão, que se inspira em quase tudo do que compõe o que é o nacionalismo cristão americano hoje nos Estados Unidos.

Creio que uma leitura rápida que ajudaria muito a entender o Brasil agora, e porque estamos diante do nascimento de uma versão (ainda) tupiniquim do nacionalismo cristão americano, é do livro "Taking America back for God", dos pesquisadores Andrew Whitehead e Samuel Parry.

Quando a esquerda americana se animava em denunciar uma inclinada dos Estados Unidos para uma teocracia por conta das relações de Donald Trump e seu governo com extrema-direita evangélica do país, eles foram rápidos em expor, com dados, que a preocupação era sem sentido, e que o país continuava lidando com uma atualização do nacionalismo cristão.

Assim, na definição dos pesquisadores, em teocracias, a ideia é principalmente que a Bíblia forje as leis nacionais, ou ainda mais, que dela saiam as próprias leis nacionais. Cristãos nacionalistas, ao contrário, entendem a Constituição e as Leis como "divinamente inspiradas" (não por acaso, defendem veementemente a ideia da "lei e ordem'').

Ou seja, nossas Leis não têm, nem de longe, o papel autoritativo da Bíblia, mas não é por acaso que elas corroboram com a Bíblia. É sobretudo porque por detrás dos legisladores (conservadores) que fazem as Leis, há a inspiração de Deus determinando seu conteúdo. A Democracia é um regime político suficiente para que Deus "levante" os seus "escolhidos" para fazer a sua vontade. André Mendonça estaria nessa categoria.

Numa teocracia, segundo os autores, líderes religiosos possuem papel central no governo e na governabilidade. Cristãos nacionalistas, dizem, estão dispostos a eleger estrategicamente líderes, ainda que notoriamente "ímpios", desde que eles se comprometam em defender ferrenhamente as agendas conservadoras.

Ou seja, por mais influente e "poderoso" que Malafaia seja, por exemplo, ele sabe que o seu projeto político só se materializa na medida em que ele consegue "converter" o seu rebanho em voto em bloco em determinados candidatos políticos, de determinados políticos, no Executivo ou no Legislativo, para que eles sim executem a agenda que ele gostaria de impor.

Desde que o governo Bolsonaro uniu a agressividade e histeria das lideranças fundamentalistas pentecostais e católicas carismáticas, com a sutileza (ou frieza) e erudição do fundamentalismo reformado calvinista, além do silencioso e quase invisível apoio de conservadores espíritas, a ideia de um país que se curve e se forje cada vez mais à leitura fundamentalista da Bíblia é sim real.