Ronilso Pacheco

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Opinião

Francisco fará falta como voz dissonante num mundo de líderes extremistas

Francisco é o papa que pegou um dos períodos mais radicalizados da história recente, e isto não é trivial.

Sim, o papa João Paulo 2º pegou um período realmente polarizado. Estados democratas, capitalistas e de orientação comunista dominaram o debate geopolítico.

João Paulo é tido como fundamental para a derrocada do comunismo na Europa, por experiência própria com o comunismo na Polônia, sua terra natal.

Joseph Ratzinger foi contemporâneo do período da "guerra ao terror", na esteira da resposta, e da nova postura internacional dos Estados Unidos após os atentados às Torres Gêmeas no 11 de setembro.

Ratzinger conviveu com um mundo em ebulição política desde os levantes da Primavera Árabe, iniciados na Tunísia, em 2010, até o "Occupy" em Nova York, iniciado em 2011.

Jorge Mario Bergoglio, no entanto, ao chegar em 2013, encontrou um mundo que se inclinava para uma profunda radicalização política. No Brasil, ainda estávamos sob os efeitos das manifestações de junho, que foram das reivindicações por passagens de transportes públicos mais baratos ou gratuitos ao difuso movimento contra a corrupção.

O campo progressista, no Brasil e na América Latina, começou animado com a força demonstrada pelo movimento chamado de "15 M" e seus protestos a partir de 2011 na Espanha, que originou o partido "Podemos", em 2014.

Era também a contemporaneidade do segundo mandato do presidente Barack Obama, nos Estados Unidos, e a ampliação e a continuidade de sua política de diversidade.

Se militarmente, e mesmo em termos de encarceramento em massa — tema sensível para a população pobre e negra no país —, Obama não mostrou avanços esperados, em termos de diversidade e inclusão — reconhecendo e incluindo minorias sociais em políticas de governo, principalmente no campo da educação —, os avanços foram significativos.

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Tudo isso junto trouxe também uma profunda resposta conservadora. Aliás, ultraconservadora.

Assim, papa Francisco, ao iniciar o seu pontificado em 2013, tornou-se contemporâneo dessa onda ultraconservadora no Brasil, nos Estados Unidos e no mundo como um todo.

Ascensão da extrema direita, aprofundamento da xenofobia e do discurso contra imigrantes, crescimento de movimentos neofascistas, aumento de narrativas abertamente neonazistas, movimentos antidemocráticos... E, claro, a ascensão ao poder via eleições de líderes que foram se mostrando profundamente autoritários e ditatoriais, a despeito de serem eleitos em democracias.

Ao optar pelo foco no carisma do papa Francisco, o que é real, e sua profunda conexão com o povo — seu legado de mensagens de paz, tolerância, respeito e defesa dos mais pobres e sua alegria —, nós todos, analistas, jornalistas, comentaristas, corremos o risco de optar pelo silêncio em tempos sombrios.

O silêncio sobre como o papa Francisco foi também uma contenção fundamental em tempos de radicalização política e discurso de ódio globalizados.

O mundo está claramente mais perigoso e inseguro, e muitos países hoje carregam o título de "democracias" a despeito de alguns de seus líderes solaparem abertamente a democracia, de planejarem golpes, de estimularem ataques violentos a símbolos institucionais de preservação da democracia.

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Este também é um mundo em que a religião é muito mais politizada. Veja as cruzes, as bíblias e os versículos exibidos no ataque ao Capitólio nos Estados Unidos em 2021. Veja as cruzes, as bíblias, os versículos e hinos em cartazes no ataque às sedes dos Três Poderes em Brasília em 2022.

Quando Donald Trump diz em sua mensagem de Páscoa que está disposto a transformar os Estados Unidos em um país mais religioso e abre, na Casa Branca, um Escritório da Fé, isso não é sobre religião, é sobre política.

Quando Benjamin Netanyahu recorre ao Israel Bíblico, ao povo judeu do ancestral reino de Davi, isso não é sobre religião, é sobre política. As orações e versículos citados nos carros de som dos atos convocados por Silas Malafaia em defesa da anistia para os golpistas e do ex-presidente Bolsonaro, também são sobre política.

O papa Francisco era, assim, a contenção a um discurso de radicalização que encontra morada na religião. A voz de moderação e insistência no diálogo e no respeito que falta nos radicais e nos que locupletam com a polarização.

Um papa mais conservador não é apenas sobre uma mudança de estilo. Não é apenas sobre pessoas gays e trans que podem se casar na Igreja Católica ou mulheres no sacerdócio. Não é apenas sobre retroceder na simplicidade e humildade que Francisco emplacou.

Um papa mais conservador é sobre o lugar que ele ocupará em um mundo radicalizado, com a extrema direita sendo bem-sucedida no mundo, com o discurso anti-imigrante ganhando cada vez mais espaço e a usurpação de direitos das minorias sociais.

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Francisco não foi apenas um "papa carismático". Ele foi uma voz dissonante, que tinha sob sua influência quase 2 bilhões de pessoas, autoridade para exortar líderes poderosos e pessoas comuns. Ainda que o poder dele se limitasse, simplesmente, a constranger tais líderes e pessoas comuns.

Perder alguém como Francisco, agora, é muito perigoso para o mundo atual.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.