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Rubens Valente

Agente de endemias e autor, indígena morre sem conseguir teste para Covid

O indígena Aldevan Baniwa, 46, agente de endemias em Manaus (AM), morto com suspeita de Covid-19 em 18 de abril de 2020. - Noemia Ishikawa/Álbum de família
O indígena Aldevan Baniwa, 46, agente de endemias em Manaus (AM), morto com suspeita de Covid-19 em 18 de abril de 2020. Imagem: Noemia Ishikawa/Álbum de família

Colunista do UOL

19/04/2020 12h41

Na terça-feira (14), o agente de endemias da FVS (Fundação de Vigilância em Saúde) do governo do Amazonas, o indígena Aldevan Baniwa, 46, escreveu para uma amiga pelo telefone celular, preocupado com as condições de trabalho para enfrentar a pandemia no local em que estava lotado, a Fundação de Medicina Tropical de Manaus (AM). "No hospital ganhamos uma máscara por dia para usar, o ideal é uma [a] cada duas horas."

Dias antes, no sábado, ele começou a ter febre, "uma leve irritação na garganta e muito cansaço". Achando que era uma virose, tomou "um coquetel e amanheceu melhor". Mas Baniwa ainda estava desconfiado sobre os sintomas e na mesma tarde conseguiu uma solicitação de exame para Covid-19, assinada por uma médica, e fez um périplo por diversos órgãos de saúde de Manaus para tentar um exame para a doença causada pelo novo coronavírus.

"O teste está em falta, fui no Lacen [Laboratório Central de Saúde Pública], nas UBS [unidades básicas de saúde], no PS [pronto socorro] 28 de Agosto. Um fica jogando para o outro. E olha que eu sou funcionário da saúde. Tá um caos fazer exame para Covid-19", escreveu na mesma tarde.

À noite, Aldevan desabafou em sua página no Facebook. "O engraçado é que quem orienta os pacientes agentes de saúde (médicos, técnicos e demais servidores), que vão em busca do teste para Covid-19 no Lacen-FVS, é um guarda da portaria. Nada contra os guardas de portaria, [mas] para orientar, tem que ter um agente de saúde lá. Estamos de olho!" Ele comentava um vídeo em que uma mulher também informava problemas de atendimento e falta de testes no laboratório central.

Mais cedo, Aldevan havia escrito na sua página, em letras garrafais: "Sigam orientações de cientistas, médicos, agentes de saúde em geral, porque entendem sobre saúde e ignorem Bolsonaro!"

No dia seguinte, quarta-feira (15), Aldevan relatou à amiga que ele saiu em busca de atendimento. "A UBS Sávio Belota é próximo aqui de casa. Fui lá ontem, sim, mediram minha temperatura, mandaram eu tomar dipirona pra controlar febre e voltar lá caso, caso a febre piorasse". Na quinta-feira (16), houve uma piora. "Tou bem não, tou muito cansado, e a febre continua. Quando faço algum esforço, vem aquela ânsia de desmaio. Tomei dipirona. Agora, nesse momento, estou sem febre". A dipirona combate a febre.

Na sexta-feira (16), Aldevan continuava "na mesma". Mas naquela mesma tarde o quadro se agravou rapidamente e ele foi internado pela família no mesmo local em que trabalhava, a Fundação de Medicina Tropical. Em apenas 24 horas, o indígena morreu, na tarde deste sábado (18). Segundo nota da FVS, a causa foi uma síndrome respiratória aguda grave "com suspeita de Covid-19". De acordo com os amigos, ele morreu sem saber se tinha ou não a doença.

Nascido em São Gabriel da Cachoeira (AM) em 10 de janeiro de 1974, Aldevan Baniwa falava, de acordo com os seus amigos, inglês, português e nheengatu, uma das línguas faladas pelos indígenas em São Gabriel. Ele aprendeu o inglês porque morou cerca de quatro anos nos Estados Unidos com sua então mulher, a antropóloga Ana Carla Bruno. O casal teve duas filhas nos EUA, que estudam design e educação física.

Morador de Manaus há anos, no bairro Santa Etelvina, Aldevan também frequentava um sítio da família na zona rural. Foi lá que ele apresentou, anos atrás, fungos bioluminescentes a dois amigos biólogos de Manaus e do Japão. Isso deu origem a um livro infantil chamado "Brilhos na floresta" (editoras Valer e INPA), do qual Aldevan é coautor ao lado dos biólogos Noemia Kazue Ishikawa, pesquisadora do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) e Takehide Ikeda, da Universidade de Kyoto, no Japão, e da antropóloga Ana Carla.

"O fungo coloniza a folha e, com isso, ela brilha à noite. O Aldevan nos levou para ver isso. Essa é a história do livro. Quer passar a ironia de que o cientista sempre quer iluminar, mas o Aldevan ensinou que a gente tem que apagar a lanterna e ficar no escuro para ver o que a gente precisava ver. Era irônico que os cientistas tinham que apagar a tecnologia para ver o que era necessário. O livro também conta a história dos parentes do Aldevan que ficaram perdidos na mata porque escureceu mas que conseguiram voltar para a aldeia porque viram o brilho dos fungos indicando o caminho", contou Noemia.

"A perda dele é muito grande. Como amiga, pesquisadora, para a família que está ficando. A gente está perdendo indígenas que têm um conhecimento que não temos como calcular. Como ele, há muitos indígenas correndo risco grave com a Covid-19. Entendo que os indígenas deveriam ser considerados já como grupo de risco, precisam de uma atenção especial, porque estão sim mais suscetíveis às doenças contagiosas."

Por causa da suspeita de Covid-19, o local e horário do velório e o horário do sepultamento de Aldevan não foram divulgados. "Nem velório, nem uma flor nem uma vela a gente consegue fazer por ele hoje", lamentou Noemia.

A família de Aldevan divulgou uma nota nas redes sociais neste domingo (19) para agradecer à Fundação de Medicina Tropical "em nome dos médicos infectologistas" que atenderam o parente "e a todos os profissionais que ali atuam". Também agradeceu à FVS pelo acolhimento e "aos amigos, colegas e aqueles que foram solidários nesse momento de angústia e de dor".

Em nota no sábado, a FVS divulgou que um segundo profissional de saúde morreu com síndrome respiratória aguda grave. "É com pesar que a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), informa neste sábado (18/04), o falecimento precoce de dois de seus agentes de combate às endemias, sr. Clauber da Silva Cavalcante e sr. Aldevan Baniwa, por complicações em decorrência de Síndrome Gripal Aguda Grave (SRAG), causadas pela suspeita de infecção pelo novo coronavírus. Neste momento de dor, a FVS-AM se solidariza com familiares e amigos, e expressa as mais sinceras condolências pelas suas perdas."

No dia 15, a Secretaria de Saúde informou em nota oficial que o governo do "Estado recebeu mais de 118 mil itens de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), 8.200 testes rápidos para confirmação de casos do novo coronavírus (Covid-19), além de 273 frascos de álcool gel com 190 gramas cada um. O material foi enviado pelo Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde, para a Central de Medicamentos do Amazonas (Cema), e será distribuído pela Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (Susam) para as unidades estaduais de saúde".

A secretaria informou ainda que "o Governo do Amazonas tem buscado parcerias para ampliar o estoque de EPIs, diante do aumento da demanda".